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O livro

19 de outubro, 2016 - por Max Franco

 

Quando ele entrou, já era tarde da noite. O pessoal da livraria já havia começado os movimentos de fechamento. Uns corriam para cá, outros, para lá. Rostos cansados do dia longo e cheio, desejo de descanso estampado em cada centímetro daquelas faces jovens.
Mas, mesmo tarde, ele entrou me insuflando mais uma vez a velha esperança. Afinal, livro nasceu para ser lido. E como livro que sou desejava mãos e olhos em cima de mim. Livro não quer prateleiras frias, mas colo. Livro nasceu para gente. Livro só tem sentido de ser livro se lido, manuseado, manchado de vinho, pingado de café… Livro prefere o enxovalho que o inodoro, porque padecemos sem o calor acalentado da pele humana, do hálito soprado nas nossas páginas, das lágrimas derramadas nos nossos corpos.
Eu sou um livro e não me sinto bem acompanhado apenas por outros livros. Eu sei que sem gente não tenho razão de ser porque não provoco sentimentos. Livro nasce para isso. Livro é troço provocador. Somos feitos para suscitar emoções, descobertas e conhecimentos. Levamos gente para viajar por lugares que nunca foram, nem irão. Apresentamos pessoas que nunca conhecerão. Serviremos pratos que jamais provarão. Este é o nosso papel: ser sonhos de papel. Algum sonho poderia ser mais delicado?
Por isso, eu queria escapar dali. Não só queria, precisava. A solidão do livro é a do professor sem aluno, do artista sem platéia, do palhaço sem circo. Eu precisava de resgate e algo me dizia que aquele rapaz mirrado, de olhos curiosos e mãos macias poderia ser o meu salvador.
Ele se aproximou e me folheou com aquele ar de desejo que só os jovens sabem ter. Percebi de cara o interesse no meu conteúdo. Sim, eu sou gordinho. Um gordinho que satisfaz.

Ele me pegou e levou para a moça do caixa. Meu coração de papel saltou de felicidade. Porém, o preço o desestimulou e acabei de novo na pilha lotada de livros. A minha decepção poderia ser cortada com uma faca. Se pudesse chorar, teria me desfeito em lágrimas e, por sorte, não pude, porque a atendente, inesperadamente, mudou todo o roteiro.
– Olha, eu consegui um desconto bom para você. – disse a moça olhando para os olhos do garoto.
– Sério? Como você conseguiu essa maravilha?
– Funcionários da livraria tem esse direito. Quando compramos para nós, pagamos menos.
– E por que você faria isso por mim?- perguntou o rapaz intrigado.
– Porque… – começou ela repentinamente encabulada. – Posso ser sincera, não é? Porque gosto da sua timidez, do jeito que você entra aqui e fuça todos os livros, da sua curiosidade, das suas escolhas de livros…
– Gosta dos livros que eu me interesso? Que sensacional? Por que não sentamos um dia para falar de livros?
– Perfeito! – disse ela. – Afinal, falar de livros é tão bom quanto lê-los.
– E falar com você deve ser melhor ainda…
Bom… foi assim que fui salvo. Fui libertado por duas paixões. Na verdade, pelo melhor triângulo amoroso que pode existir. A paixão por mim, por livro, e entre dois jovens. Cada um precisando do outro. Um amor recíproco. Todos apaixonados por todos.