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Amor de mãe

12 de junho, 2024 - por Max Franco

Morreu-me minha mãe, a Cleide.

Sinceramente considero vexatório o verbo “morrer” ocupar a mesma linha na frase que o vocábulo “mãe. Afinal, mãe é substantivo insubstituível. Mãe é coisa rara e mães como a minha, mais ainda.

A verdade é que minha mãe não morreu hoje às 4 da manhã. Minha mãe morreu em doses homeopáticas, em gotas, num longo gerúndio de vários anos.
Primeiro, foi se esvaindo a memória, grão por grão, como fosse a areia de uma ampulheta impiedosa que nunca interrompia sua queda.
Depois, esgotaram-se as interações, os diálogos e as vaidades. Jamais pensei na Cleide sem vaidade, nem eu nem ninguém. Minha mãe saía de casa sempre arrumada, maquiada e bem vestida, afinal era costureira de mão cheia, ofício que praticou desde os 8 anos, quando mal conseguia alcançar com os pés o pedal da máquina de costura. Foi com essa atividade que criou os filhos, fazendo vestidos para as inúmeras clientes, sempre com muito capricho. Minha mãe, por vezes, muitas, trabalhava madrugada adentro para entregar em dia suas encomendas. E foi desse jeito que segurou as pontas de sustentar três filhos, todos estudando em escola particular. Meu pai tinha o salário, nada vultoso, de cabo reservista da Marinha. Sem seus vestidos, teríamos – eu e meus irmãos – vivido em uma situação muito mais vulnerável.
O Alzheimer é uma doença torturante, porque ela vai arrancando nacos da memória da pessoa com requintes de crueldade. É uma morte paulatina e teimosa. Por isso, faz anos que minha mãe morre para mim. Começou no dia em que não me reconheceu. Depois de alguns minutos, um brilho apareceu nos seus olhos e disse: “você é o Max Roger? Eu te amo tanto, meu filho!” Me emocionei imenso. Disse-lhe a fim de aproveitar essa fresta de consciência que a amava mais ainda. Depois fui lhe buscar água, mas quando voltei ao quarto, ela me perguntou se eu era o pai dela. Por anos, cenas como essa se repetiram, mas cada vez mais.
Nem preciso descrever a dor desses episódios, afinal já duvidei de muita coisa na minha vida, mas jamais, nem sequer por um segundo, do amor desmedido da Cleide. Minha mãe sempre foi a minha principal fã e todo mundo o admitia. Ela dizia que amava igual os três, mas estava piscando em neon na sua face que eu era o preferido, o eleito filho mais amado. Ela nunca permitiu me sentir incapaz de fazer algo, porque sempre me apoiou, elevou, entusiasmou. Sempre me achei capaz de tudo que fiz (mais do que realmente era!) porque a Cleide nunca duvidou das minhas competências. Até o fim da vida, ela mantinha ao lado da sua rede os meus livros, todos enxovalhados de tanto que os manuseava.
Por isso, não lhe ser reconhecível doía tanto. Era como se nem eu mais me visse.
Perder este reconhecimento, dia à dia, por anos, foi como se uma maldita torneira se mantivesse aberta gotejando amargura e fel na minha alma.
Por isso, perdi-a por anos para perdê-la, de vez, nessa madrugada. Pois é: foram perdas demasiadas.
Essa é a Vida, e ela não tem mesmo que fazer sentido para ninguém. Por que teria que fazer para mim?
Não obstante, enquanto eu mesmo tiver memória, sei que ela estará viva em mim, por tudo que minha mãe foi, por tudo que me ensinou, por muito que sou e sei.
É que a Cleide era realmente de amor extremado.
Para ilustrar, lembro-me de, certa vez, eu deveria ter 12 anos e uma cabeça cheia de vento. O Ricardo me chamou para uma festa. Na época, chamávamos um “som”. Que nome ridículo, porém era isso mesmo. “Vai ter um som na casa de sei lá quem”. Eu nunca tinha ido para um som e estava doido para ir daquela vez. Minha mãe me deixou ir. Até estranhei. Naquela noite de sábado, saí de casa de roupa nova, todo cheiroso, no alto da minha recém-adquirida puberdade. Eu e o Ricardo caminhamos alguns quilômetros lá na Parangaba. Foi que ele olhou para trás e me disse: “você não vai acreditar, mas a sua mãe está nos seguindo!”. Eu acreditei. Eu a conhecia. Olhei para trás e a vi detrás do poste. Pelas ruas escuras da periferia de Fortaleza, aquela mulher de meia idade, sozinha, nos seguia a pé, já que não tínhamos carro.
Devo dizer que a minha reação foi de raiva e vergonha. Um rapaz daquela idade sendo escoltado pela mãe?! Que absurdo! Fiz de conta que não a vi e caminhamos mais ainda noite adentro, por ruelas e esquinas cada vez mais sombrias. Quando enfim cheguei na casa do som, levei um susto. Só tinha gente grande ali. Todo mundo meio mal encarado. Todo mundo desencorajando a entrada na festa dos dois pivetes molhados de suor. Foi aí, inundado pelo medo daquela gente estranha e esquisita, que agradeci aos céus a presença da minha mãe ali. Fui até a esquina e lhe disse que queria ir para casa. “Não quer ficar, filho? Eu te espero!”; “Não, mãe. Prefiro voltar com você. Melhor, não é? Você sabe voltar, mãe?”; “A gente encontra o caminho”. Ela me deu a mão e retornamos para casa. Quando chegamos, ela me trouxe um suco de laranja e um sanduíche de queijo coalho. E eu dormi, seguro e sem som algum.
Anos depois, viajei para a Itália para estudar por alguns meses. Quando voltei, havia em casa uma grande roseira que ocupava boa parte do jardim. Ela me disse que havia plantado a roseira para ter quem a ouvisse falar de mim. E ela passava horas, todos os dias, cuidando da roseira como se cuidasse de mim. Pois eu voltei e, em menos de um mês, a roseira murchou e decaiu. Minha mãe me disse que foi por ciúmes.
A Cleide era assim, de amor exacerbado.
Foi por momentos dessa qualidade que sei que, mesmo às vezes não se lembrando de mim, o amor por mim nunca desocupou os territórios da natureza da minha mãe. Este amor era tão forte e grande e pulsante que conseguia resistir às penumbras dos seus devaneios e da sua consciência fugidia.
Por tudo isso, sei que a Cleide sempre estará presente. Porque o amor encontra sempre um jeito de permanecer vivo.
Inclusive quando eu mesmo não estiver mais por essas bandas, o amor dela será um legado para meus filhos e para os filhos dos meus filhos.
O Amor – ouvi dizer – é um troço teimoso.