http://www.maxfranco.com.br/contos/o-heroi-dos-balcas/
O herói dos balcãs
04 de fevereiro, 2017 - por Max Franco
Era uma vez, séculos atrás, séculos não, milênios atrás, numa ilha deserta, deserta não que é muito clichê, nas savanas da África, mas savana também é lugar-comum, então, numa aldeia recôndita da região a qual hoje denominamos como os Bálcãs, um caçador forte e destemido. Na verdade, estou maquiando o problema. O fato é que ele era fraco, mais do que fraco, ele era magro quase tísico, e podia ser chamado de tudo, menos de destemido. O nosso protagonista, de fato, tremia de medo toda vez que tinha que encarar um bicho qualquer. Por isso, os demais caçadores não o perdoavam e se naquela época o nome bullying já houvesse sido cunhado, decerto todos diriam que o nosso personagem principal sofria com essa prática diariamente.
Todo mundo sabe que bullying é coisa deplorável e, por isso, injustificável, mas – no caso do nosso citado caçador – infelizmente, para ele, explicável, porque o desastre tinha o péssimo hábito de segui-lo aonde quer que fosse.
Os companheiros de caçada, por exemplo, costumavam se reunir ao redor da fogueira, como faziam todas as noites, para relatar as aventuras do dia para toda a tribo. Cada um se esforçando para contar da forma mais mirabolante e inventiva como havia feito para abater a presa que trouxera para aldeia.
Ele, coitado, nunca tinha nada para contar. A não ser que quisesse relatar como foi atirar a lança no antílope e, em troca, ganhar um olhar de quase desprezo quando a arma ricocheteou nas costas do bicho sem lhe causar o menor dano. A não ser que quisesse narrar como fez para escapar da perseguição que um avestruz lhe impôs. A não ser que quisesse contribuir mais ainda com a destruição da sua imagem e, por fim, atirar uma pá de cal sobre a sua já combalida dignidade. Afinal, tudo que lhe ocorria era sempre malfadado, azarado, equivocado.
Entretanto, ele se lembrava das palavras do pai, as quais, até então, não tinham lhe servido para muita coisa: “Se não der para ser mais forte, filho, seja o mais esperto!”.
Como assim “mais esperto”? O que tem a ver esperteza com caçadas a bestas selvagens que eram maiores do que ele. O que precisava era de força.
E seus braços raquíticos não deixavam dúvidas sobre a sua capacidade muscular.
Como não tinha, nada funcionava para ele.
Até aquele famoso dia.
Ele caminhava sozinho. A solidão lhe caía bem naqueles dias. Não aguentava mais a gozação dos colegas de serviço. A floresta estava estranhamente silenciosa quando um grito rasgou a quietude da tarde. Ele era de natureza covarde, mas a sua reação foi a de correr para onde vieram os reclames. Não foi por coragem, foi por reflexo. A cena, no entanto, com a qual o nosso personagem se deparou lhe fez se lembrar do quanto era frouxo: a garota era jovem e bela, tão bela quanto uma garota que não tomava banho, não cuidava da pele, dos dentes e do cabelo poderia ser. (Tinha literalmente uma beleza “natural”). No entanto, a moça tinha um problema. O problema tinha mais de dois metros, era peludo, e dava toda a pinta que queria comê-la sem levá-la antes para jantar. A primeira coisa que passou pela cabeça do nosso herói em potencial foi fugir. A segunda e a terceira também. Ele – inclusive – deu dois ou três passos vacilantes na direção da fuga. Porém, uma imagem o fez mudar de ideia: a fogueira. Sim, a fogueira! Afinal, aquela seria uma chance de… isso… poderia ter algo para encantar a todos na fogueira. Enfim, a sua história! Ele poderia ter a sua história! A glória da fogueira dissuadiu-o da sua covardia. Mas, o que faria? Enfrentar o urso voraz? Não seria do seu feitio. Então, o que inventaria? “Se não der para ser o mais forte, seja o mais esperto”! Mais esperto! Um garrancho de ideia se escarafunchou repentinamente para dentro da sua cabeça. Não era um plano. Teria que evoluir muito para se apelidada de “plano”, mas era o que tinha. O caçador decidiu chamar a atenção da besta ensandecida, e por isso ele gritou. Gritou e correu feito louco. O bicho, por sua vê, não demorou a seguir o seu alvo pelo meio do mato urrando terrivelmente. Nosso personagem não era forte nem destemido, mas era rápido, e com o medo que sentia virou uma versão pré-histórica do Usain Bolt. Ele tinha também outra pequena vantagem sobre o animal. Ele conhecia a região e sabia que logo mais à frente havia um grande declive. Chegar ao barranco era o seu sonho de consumo naquele momento. Então, ele correu. Correu e correu. E foi com alívio que ele viu o barranco dar lugar ao vazio do despenhadeiro. O urso estava palmos atrás no seu encalço e não esperava que o homem alcançasse, com um salto inesperado, o galho daquela árvore. Foi aí que o bicho perdeu o chão, o chão e a vida quando despencou rolando até o fim do precipício.
A fogueira estava pronta. A mais linda de todas as fogueiras. A própria fogueira. Se pudesse, teria feito um selfie e postado no facebook. Cardápio? Urso na brasa. O maior dos ursos já caçados pela tribo. Os olhares voltados para ele eram de pura surpresa, mas ali não havia só surpresa. Ele identificava mais um detalhe naqueles olhares. Um tempero nunca antes saboreado: uma deliciosa admiração. Enfim, pela primeira vez, o admiravam. Não só pelo urso enorme que ele trouxera para a aldeia, mas pela bela moça que o acompanhava. Nosso herói havia sido duplamente agraciado pelo destino. Nunca mais seria alvo de chacotas. Nunca mais. Ele agora seria conhecido como “Nhequiiporoá”, que era “Grande caçador de ursos pardos” no idioma local.
Por capricho do acaso, a sua mulher era versada na arte dos desenhos rupestres e gravou nas rochas a façanha do seu consorte.
No final, o único caçador que ficou célebre da posteridade foi justamente Nhequiiporoá. Ninguém jamais soube dos caçadores destemidos e hábeis da sua tribo. Somente dele: o corajoso caçador dos Balcãs.
Até hoje, a estátua de bronze de um homem forte e intrépido segurando a enorme cabeça de um urso recebe os turistas na entrada da cidade de Trogir e representa todo o espírito vigoroso do povo desta região.
Pronto. Eis o que é storytelling.
(…) Fragmento do livro “Storytelling e suas aplicações no mundo dos negócios, Editora ATLAS, 2015.”
Comentários