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Paixão inadequada
02 de abril, 2016 - por Max Franco
PAIXÃO INADEQUADA
“Em que espelho ficou perdida a minha face?” (Cecília Meireles)
Tudo começou aos quatorze anos. Época oportuna para começarmos a desenvolver diversos hábitos, dos menos aos mais questionáveis. Esse, em particular, seria inaceitável lá na Parangaba. Os companheiros de pelada no Campo Real, lá na Vila Betânia, tirariam o meu couro e o espichariam para secar ao sol ao menos se desconfiassem que eu fazia uso de tal… Coisa.
Mas, a verdade era que eu o fazia mesmo. Sempre escondido – é claro.
Na maioria das vezes no quarto enquanto ouvia – no último volume – os primeiros hits do U2 ou do The Cure.
Outras vezes, para variar um pouco, eu escapava de casa ia fazer uso dele debaixo de alguma árvore, nas proximidades da lagoa da Maraponga, portando meu novo vício debaixo da blusa. Ninguém poderia ver. Ninguém entenderia.
Hoje posso admitir: Quem me iniciou no costume foi o Manuel.
Não foi no primeiro contato que as solicitações do Manuel me convenceram. De início, devo dizer, achei-o até esquisito. Mas, mesmo considerando-o uma pessoa de tristeza contagiante, eu me via cada vez mais enredado nas suas tramas. Não sei se o conceito de proibido e o medo de ser descoberto me desestimulavam ou se me motivavam ainda mais. Mas, como o luxo das certezas é um patrimônio da juventude, sucede ao jovem ser afeito à rebeldia. Oposição. Adrenalina. Emoção. Era tudo isso que o Manuel me inspirava e eu estava adorando. Até que…
Até que meu pai descobriu. Ele achou socado debaixo do colchão e ficou estarrecido. Não julguem o velho, por favor! Meu pai tinha se evadido do sertão brabo para se tornar marinheiro em tenra idade. Sua única leitura na vida inteira foram aqueles livrinhos de bolso de faroeste. Agora está explicado o motivo de me chamar Max Roger, não é? Mas poderia ser até pior. Que tal Burt Lancaster, Steve MacQueen ou Kirk Douglas?
Mas, quando interpelado não me fiz de rogado e assumi para o meu pai os meus atos. Com olhar altivo e maxilar trincado, admiti que gostava do Manuel sim. Por sinal, naquela altura, não só do Manuel, mas também do Fernando, do Carlos e de Florbela. Sim, claro, Florbela. Como não amar Florbela?!
Pessoa, Drummond e Espanca chegaram depois de Bandeira e por causa de Bandeira. O velho tinha o poder de me comover. Até hoje. Porque Manuel Bandeira se realizava na sua poesia. Lá, ele podia correr descalço na areia quente. Podia chupar picolé com febre. Podia sair no sereno. Lá, o tísico se libertava das limitações do seu corpo debilitado por anos de uma doença que o extirpou dos brinquedos da juventude. A poesia era a sua vitamina. O seu espinafre.
Como ele dizia:
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio (…)
Tudo que ele sempre quisera fazer e não pudera.
Eu o entendia porque também queria fazer tantas coisas – e ainda quero – que não podia – e ainda não posso. Descobri Bandeira logo no primeiro semestre de faculdade. Lia-o dentro do ônibus. Como eu chegava a pegar dez ônibus por dia, o Manuel me fazia muita companhia.
Imaginem como era visto pelos demais passageiros aquele garoto que recitava poesia para si mesmo num coletivo lotado (às vezes de pé, às vezes emocionado). Ocorre-me hoje que devo ter escapado por pouco de não me terem largado no Hospital Psiquiátrico Mira Y Lopez que ficava no trajeto.
Hoje leio menos poesia. Sei lá o motivo. Talvez porque não ande mais de ônibus. Talvez porque não acredite mais na Pasárgada. Talvez porque pior do que querer escapar para Pasárgada e ter sido exilado de lá.
Queria que o Manuel me levasse embora de novo pra Pasárgada.
Lá, ao menos, eu seria amigo do rei.
Afinal, se existe uma coisa rara nesse mundo ego-individualista é amigo.
Ainda mais rei.
FRAGMENTO EXTRAÍDO DO LIVRO PALAVRAS ALADAS, PRÊMIO MILTON DIAS DE MELHOR LIVRO DE CRÕNICAS DE 2010 – SECULT CE
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