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Sangue e ouro

19 de outubro, 2024 - por Max Franco

Ninguém sai assobiando de um encontro com o próprio passado.

Martha Medeiros

 

Isabel Allende escreveu livros maravilhosos, insubstituíveis, entre eles “A casa dos espíritos”, “O jogo de Ripper”, “Violeta” e, em especial, “Inés de minha alma”. Neste, a escritora entrega um instigante romance histórico sobre a conquista e colonização espanhola do Chile. A obra narra a saga de Inés Suárez, companheira de Pedro de Valdívia, que embarca para o Novo Mundo imbuída pelo desejo de viver uma vida de aventuras. Na América, Inés encontra seu grande amor, Pedro de Valdivia, mestre de campo de Francisco Pizarro, com quem Inés enfrenta riscos inimagináveis, principalmente enfrentando os nativos mapuches.

Há poucos registros históricos sobre a morte de Valdivia, entretanto tudo indica que o conquistador morreu nas mãos de Lautaro,  líder mapuche na Guerra de Arauco durante a primeira fase da conquista espanhola de Chile. Allende, por sua vez, faz uso da sua profícua criatividade e de alguma liberdade poética para relatar como teria se dado a morte do espanhol.

A escritora é virtuosa nessa descrição, a qual resumirei:

-Valdivia é amarrado completamente nu numa estaca. A tribo toda está reunida. Lautaro ocupa lugar de honra e dirige toda a cena. O carrasco sente o peso da sua ferramenta: uma espécie de chicote sem cabo, mas com uma ponta pesada de metal, um anzol impiedoso. Cada chibatada arranca um farto naco de carne do colonizador europeu, e são muitas lapadas, incontáveis. Por fim, mesmo depois de horas de tortura, os mapuches guardavam uma forma ainda mais cruel de execução. Pedro, que está reduzido a uma massa disforme de carne e sangue, é obrigado a engolir uma poção escaldante de ouro líquido. Uma ironia final dos mapuches contra o conquistador.

Agora você deve estar se perguntando por que me detive nessa determinada cena. É mesmo uma bela pergunta.

O motivo da referência é simples: me dei conta de que a Vida é mapuche e faz o mesmo conosco.

A verdade é que a Vida é pródiga em nos providenciar perdas e danos, como também ganhos e vitórias. Há quem diga, porém que é mais generosa em prover os sinistros. É ela, portanto que pega o chicote e, dia após dia, vai nos arrancando, pedaço por pedaço, nossa criancice, depois a inocência e – meticulosamente – uma por uma, nossa juventude, saúde, esperança e, por fim, nos tirando, sem qualquer piedade, a própria vida.

A Vida, muita vez, nos subtrai mãe, pai e amigos.

Acontece tantas vezes de a Vida nos roubar até as memórias, e sem as nossas lembranças nos perdemos de nós mesmos. É nesse momento que nos erramos, nos extraviamos, porque perdemos o sinal do nosso GPS: as próprias histórias.

Não obstante, há outro açoite que a vida nos presenteia: as memórias. Afinal há todo naipe de reminiscência. Há inclusive as dolorosas. Há algumas tão torturantes que nos atormentam os sonhos ou nos atacam na calçada obstaculando a caminhada. Lembranças são assaltantes que nos ameaçam nas esquinas. E nos arrancam pedaços e mais pedaços da nossa alma.

A Vida é inexorável.

E toda recordação, mesmo aquela que nos empurra desgosto, é positiva, porque essa tem algo a nos ensinar. Somos quem somos, porque aprendemos algo com nossos equívocos. Porque aprender rima com se arrepender.

Da mesma forma, até as rememorações que nos trazem prazer podem nos açoitar, porque… simples: porque tudo aquilo que foi bom ficou lá atrás, em algum endereço do nosso passado, e a Vida, sem nenhuma cerimônia, a extirpou como qualquer coisa passageira. A Vida segue seu rumo a despeito do que amamos, ou de quem. A Vida não respeita muita coisa.

O que fazer quando os passados saltam detrás das portas para nos atormentar?

Talvez empunhar o Machado e seguir adiante.

Quem sabe até, os machados.

O Machado com “M” maiúsculo, o de Assis, quando diz: “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”

E o machado ferramenta para debastar a vegetação dos pretéritos-intrusos que aparecem subitamente nos territórios do nosso presente. Afinal, é para frente que se anda, dirão os otimistas.

Que também dirão: “lá na frente haverá uma recompensa, quem sabe um pote de ouro!”

É. Isso também me preocupa.