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A peste de Camus e a Nossa
20 de março, 2020 - por Max Franco
“O fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer.”
(Roland Barthes)
Oran (fala-se “Orran”, lembra o nome de alguma cidade chinesa da qual você ouviu falar recentemente?) é uma cidade comum na costa argelina. Uma cidade de colonização francesa sem grandes predicados. Nada digno de nota.
Até o dia em que a peste desabou feito um meteoro sobre a cidade.
“Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma Prefeitura francesa na costa argelina”. (p.7).
A habitual tranquilidade é repentinamente interrompida por uma peste que se alastra gradualmente e que aterroriza os cidadãos. As primeiras manifestações da doença são demonstradas por uma invasão de ratos adoecidos e atordoados. Poucos dias após o aparecimento dos roedores, um notável número de pessoas começa a apresentar sintomas de uma peste que progride e, assim, aos poucos e cada vez mais, a cidade começa a isolar-se do resto do mundo para evitar contaminações.
“(…) a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos cidadãos foi o exílio… Chegava sempre o momento em que nos dávamos conta de que os trens não chegavam”. (p. 52).
As consequências emocionais também não tardam a aparecer já que os habitantes de Oran se veem cada vez mais amedrontados pela ameaça da peste e angustiados pela sensação de distanciamento do mundo.
Rieux, que é o médico protagonista de “A peste”, é casado, mas sua mulher não mora em Oran. A verdade é que o médico é mais casado com a peste do que com a própria esposa. Não demora, então, para que ele se envolva mais ainda com a pestilência porque o terror e o isolamento aumentam de modo galopante. O medo é geralmente o gatilho para a violência e para o caos. Incêndios, atos de desobediência civil, embates com a polícia e, para piorar, problemas de abastecimento de comida na cidade, o que, por sua vez, vai desencadear o aumento do preço dos produtos. É o que acontece amiúde com o caos, ele sempre causa mais caos.
Dr. Rieux e outros médicos começam a trabalhar no desenvolvimento de um soro com a esperança da cura. Em 2020, essa é uma situação bastante comparável com a realidade corrente. O mundo atual também olha com enorme ansiedade para os médicos e cientistas. Depois de convivermos com tanto obscurantismo e negações à ciência, soa, de certa forma, irônico, quase uma vingança poética, que devotemos novamente tal esperança aos pesquisadores.
Há uma questão, porém, que se torna essencial para a compreensão de “A peste”. O próprio Camus declarou que o livro é uma alegoria, uma analogia ao nazismo e ao fascismo. Depois de sabermos desse detalhe, fica até fácil de compreender quem Camus está representando com essa imagem dos ratos que trazem a morte, a fome e a violência, não é?
A Peste é uma obra literária com panos de fundo existencialista. Camus não só conhecia com profundidade a obra de Sartre. Ele era amigo de Sartre. A peste, portanto, apresenta a vida sob uma perspectiva sem qualquer sentido e sem sustentações concretas. Não há soluções nem respostas fáceis, por sinal, em toda a obra de Albert Camus, como podemos ver na tríade “A Queda”, “A Peste” e “O Estrangeiro”, obras essenciais para quem quiser conhecer o pensamento de um dos maiores romancistas e intelectuais do século XX.
A peste – até surpreendentemente – não acaba em uma tragédia completa. Na verdade, o seu fim chega entre comemorações, aplausos e festejos. Apesar das muitas mortes, Oran supera a peste, entretanto, Camus não deixa de dar uma “alfinetada” que funciona como um alerta que não podia ser menos atual:
“(…) Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”(p. 172, 173)
Nós que vivemos esse histérico ano de 2020 bem sabemos que nem a peste nem, principalmente, as inclinações pelo fascismo desapareceram da vida dos homens hodiernos.
Como diz Bertold Brecht:
– A cadela do fascismo está sempre no cio.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
CAMUS, Albert. A Peste. 1978. Editora: Record.
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