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A confissão pública – Notas do subsolo
27 de março, 2020 - por Max Franco
“Eu sou um homem doente… Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. (…)” É assim que Fiódor Dostoiévsky começa o seu Notas do subsolo, 1864. Um texto escrito em primeira pessoa e seguindo a técnica do “fluxo de pensamento”. O personagem principal é o narrador que revela os próprios pensamentos em uma avalanche de confissões que não demonstram quaisquer anteparos. A verdade é que o personagem-narrador não poupa ninguém, nem ele mesmo.
No começo do livro, acompanhamos um grande preâmbulo, um monólogo do narrador que soa como um tsunami de ódio a tudo e a todos, e sobra até para o pensamento racionalista que começava a influir sobre a Rússia naquela época.
Na segunda parte do livro, o sarcasmo é trocado por um argumento habitual na obra de Dostoiévski: a busca pela redenção por meio da culpa.
Dostoiévsky é um daqueles nomes sagrados dos cânones literários. Ler “O idiota”, “Crime e castigo” e “Irmãos karamazov” é praticamente uma obrigação para qualquer sujeito que deseje se credenciar como um conhecedor dos clássicos. A verdade é que a Literatura russa é uma das mais ricas do planeta, afinal, poucos países podem se vangloriar de ter nomes tão emblemáticos quanto Tchechov, Gógol, Turguêniev, Tosltói, Púchkin, Nabókov, Górki e, claro, Dostoiévsky, que é um dos mais populares em todo o mundo.
O que nem todos sabem é que Fiódor Dostoiévski foi preso por participar do Círculo de Petrachévski, uma confraria de intelectuais que foi considerada rebelde por debater a política russa. Além dele, quinze escritores foram sentenciados à morte. Entretanto, no exato momento do fuzilamento, vendados e aguardando a execução, os condenados escutaram, com alívio, a leitura do perdão do Csar.
Dostoiévski é condenado a cumprir quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. É uma época, portanto, de profunda reclusa e, claro, de reflexão.
O escritor sempre se posicionou contra o crescente ateísmo que crescia nos países europeus. Ele acreditava que essas tendências não se adequavam ao espírito russo, originalmente religioso. O embate entre a razão e fé vai ser uma constante nas suas obras desde “Notas do subsolo”.
“Se Deus não existir, tudo é permitido!”
O livro traz uma carga filosófica tão forte que pode ser tida como uma excelente introdução ao existencialismo. Afinal, o personagem não só é consciente do seu caráter desprezível, como confessa abertamente a sua natureza para os seus potenciais leitores, sem escrúpulos e sem atenuações. O homem do subsolo não sonha, não se engana, não se esquiva aos próprios golpes. Sartre, decerto, aplaudiu o seu realismo sem firulas.
Nesse exato momento, em março de 2021, há um número expoente de pessoas em todo o mundo que estão nos respectivos “subsolos”. O que temos a aprender com as inquietações desse homem torturado pela própria autocrítica? O que podemos aprender com as autopunições de um sujeito que é inteligente em demasia para se entender e sagaz de menos para sair da prisão na qual ele mesmo se colocou? Afinal, o “subsolo” do personagem de Dostoiévsky pode não ser apenas e exatamente o “galinheiro” que ele descreve. O “subsolo” funciona para ele como um verdadeiro inferno, um lugar para atormentar-se.
O diálogo com este miserável bem que poderia nos ajudar nesse confinamento no qual estamos inseridos tantos anos depois.
Bem que poderíamos sair desse subterrâneo melhores do que entramos.
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