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A velha pandemia

28 de junho, 2020 - por Max Franco

3 da manhã. Pálpebras, duas toneladas cada uma. Noite fraca de passageiro. Grana curta. Noite longa. Ao menos se não tivesse perdido o emprego nessa loucura de pandemia. Mas tantos perderam…  A opção para quem não tem opção é a de uber. Trabalho escroto. Escravatura moderna. Mas, melhor do que passar fome e deixar os pequenos sem feijão. São 3 horas, já está tarde, a noite está ingrata. Não sai mais nada de noites assim. Hora de ir para casa.

O telefone grita anunciando mais uma chamada. Quem sabe é para perto de casa e dá ainda para tirar um trocado. Vamos tentar a sorte. Viver é isso mesmo, a cada minuto tentar a sorte e tentar enganar o azar.

-Alto da bezerra? – disse. Era para as minhas bandas. Sorte sorrindo acenando ok.

-Vamos nessa! – falou o passageiro sem tirar a máscara e ocupando o banco traseiro.

A melhor e a pior característica de se trabalhar na praça é o que se conversa com os estranhos. Há todo tipo de conversação. Algumas que sugeriam surdez. Outras boas de se escutar.

– Hospital, moço? – perguntei sem expectativas. Hospital nesse período covidiano não era endereço improvável.

– Meu irmão mais novo. O caçula.

– Pandemia?

– Outra.

– Como assim “outra”?

– Pandemia sem corona.

– E tem?

– Meu irmão vive nessa desde criança, ele sabe melhor.

Às 3 da manhã não dá para mensagens implícitas, a cabeça já não funciona. Mas a necessidade de entender foi maior. É que nos últimos meses, a minha única satisfação era a de tentar desvendar cada passageiro. Curiosidade? Por que não?

-Não sei se entendi. Que pandemia é essa?

O homem suspirou e passou lentamente a mão no rosto como se quisesse retirar alguma coisa que estivesse ali, algo que pousara, mas não devia.

– Meu irmão se chama Marcos. Tem 19 anos. Joga bola bem pra cacete. Jogava, na verdade… Fazias uns bicos como garçom de restaurante. Mas fechou tudo. Sem grana total, ele deu vacilo. Invadiu casa de família lá no morro e deu ruim total. O crime não aprova, sabe? O crime não gosta de crime de vacilão. Atrapalha os negócios. Chama polícia, né? E polícia tem acordo simples com o crime. Pega a grana semanal e não se mete nos tráficos. Mas tem que ficar esperto. Não pode ter roubo nem palhaçada.

-Pegaram o seu irmão e quebraram? – perguntei assustado.

-Eles? Eles, não. Ele fugiu. Foi para a casa da tia Cecília no Ancuri. Correu.

– E como…

-Eles descobriram que foi ele que deu o 155 e, com o sumiço dele, me procuraram. O papo não podia ter sido mais reto. Ou quebrava as pernas e os braços do meu irmão caçula ou o crime ia apelar para a ignorância e dar sumiço na família toda. É a lei da favela. Ninguém atrai polícia de bobeira.

– E você… – comecei sem acreditar.

– Eu mesmo o encontrei e quebrei seus braços e suas pernas. – disse o homem sem conter as lágrimas. – Ele nunca mais vai jogar futebol, nem comigo, nem com mais ninguém, disse o médico. Ele aleijou. Mas está vivo. Minha mãe também. Eu, também. O crime não perdoa, moço. O crime é pandemia.