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Eu, ser tão

07 de setembro, 2020 - por Max Franco

Já faz alguns anos que a minha vida é cigana. É a vida de um nômade com endereço, um logradouro pouco frequentado.
“Onde você mora” é uma pergunta que sempre pede algum raciocínio antes de ser respondida.
Tal condição, portanto, traz contradições. Ora, dores; ora lenitivos.
Hoje, por exemplo, é dia de sertão. Vale do Jaguaribe, terra cáustica. Terra de sobreviventes.
Nessa estrada asfaltada por bêbados, piso no freio para evitar os solavancos, mas aumento a velocidade do pensamento. Afinal, é da mente pensar.
Pois penso que sou como esse chão. Um chão seco, gretado, acidentado. Tenho cá meus vales, planícies e depressões. Tenho também um rio que corta o peito, que seca, mas também transborda. Porque é assim no meu sertão, basta uma chuvinha de nada e ele floresce glorioso.
É terra que aprendeu a se acostumar com a estiagem. Que morre na maioria dos dias, mas também sabe ressuscitar.
Esse sertão, esse ser tão…
Tão superlativo de paisagens. Essa secura toda no horizonte beijando o céu. O sertão se mescla ao céu, sabia? Lá, onde se perde a vista, sertão e céu são a mesma coisa.
Eu sei que sou como esse chão repleto de nada e de tudo. Uma terra dura e dorida. Uma terra semi-árida, fértil de faltas. Uma terra que cicatriza apesar de tudo.
Quando todos dizem “acabou, não tem mais possibilidade”, ela chupa do céu cada gota emprestada. O céu é avarento por essas bandas. O céu, por aqui, economiza benefício.
Mas a terra verdeja, e como verdeja bonito. É um solo que faz milagre com pouco, quase nada. E se agarra à vida até o último suspiro.
Nesse sertão, gente é feita de terra. É um povo com poeira nas rugas, que tem terra debaixo das unhas e da alma.
Eu sou acometido de estrada. Já vi tanta coisa e gente nessa vida. Por isso, aprendi: todo canto para mim tem seu canto e sua melodia. Por aqui, a toada começa sempre triste, mas depois anima. É como um repente, um desafio.
E eu também sei desafiar, morrer e ressuscitar. Não preciso de tanto nem de tanta gente. Uma chuvinha e já se colhe a fruta – sei lá – um caju doce como o céu, mas com algo rançoso da terra.
Eu também cicatrizo com o tempo e o clima. Eu caatingo e floresço à mercê das intempéries. E sigo por essa estrada sedenta e sedento.
De quê?
De vida.
De Vida na luta.
– É a vida que nos pede improviso e luta. A Vida, por aqui e por ali é sempre contenda.