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O pio da coruja

19 de outubro, 2020 - por Max Franco

A manhã mal ensaiava seus primeiros raios quando ele sentiu os apertos no pulso. Era o relógio programado para despertá-lo com a insistência da qual costumava precisar naqueles horários. Maurício pôs os pés no chão sentindo ainda a cabeça levitar. Não cogitou 5 minutos a mais. Sabia que 5 minutos têm o hábito de se transformarem em 10, 15 ou até em mais. Ele apenas se deixou levar pelo modo automático e, quando se viu, já estava no seu toyota rumando para a academia.

Mal tinha saído do condomínio, quando Maurício escutou o som que mudaria o seu dia. Era inconfundível, ele sabia. O pio da coruja não deixa dúvidas. Ele a buscou no céu e não demorou a vê-la cruzando os céus, a rasga-mortalha. “Vai ter desgraça”, sussurrava com olhar grave a avó e se benzia ferozmente. Foi com alguma surpresa que se viu fazendo o sinal da cruz como a vó lhe ensinara. Não se lembrava da última vez que o fizera. Entretanto, não se brinca com o desconhecido. Que mal faz um pouco de proteção?

Maurício pensou em pegar o pequeno terço de dez contas que mantinha pendurado no retrovisor central, mas teve vergonha. “Aí já é demasiado!”. O executivo apreciava a imagem de homem de negócios que exalava para todos. Um sujeito cartesiano e avesso ao terreno lodoso das metafísicas. Quase um vulcano de tanta objetividade. Contudo, como diz Pessoa, “Eu sou eu e minhas circunstâncias.” Todos têm as suas. Maurício igual.

A infância durou mais anos do que dura a infância. É assim nas fazendas, nas lonjuras onde morou até o período da faculdade. Os avós eram de reza fácil, diária, contínua. Ele se acostumou com os padre-nossos e ave-marias, com os medos e crendices dos parentes. Mas, não havia espaço para muitos misticismos na engenharia. E foi nessa época que Maurício decidiu chamar de superstição todas as crenças do passado.

Maurício cogitou “ave-maria-cheia-de-graça”, mas não se permitiu. O dois-mais-dois gritou mais forte. O velho dois-mais-dois de Dostoievsky. “Se Deus não existe, tudo é permitido.” Mas a vida não é só dois-mais-dois, é? A vida não é linha reta ou fórmula de Bhaskara. A vida é pedra de gelo derretendo nas mãos. Não adianta tentar segurar, porque ela vai se esvair entre os dedos. Porque você pode querer controlar e medir e pesar e planejar tudo e pôr tudo na tabela excel, menos o grito da rasga-mortalha dilacerando a paz da sua manhã. Ele se persignou, mas não conseguiu evitar o calafrio que lhe varreu a espinha dorsal com a sua mão gelada acariciando do pescoço à lombar. “Vai ter desgraça!”, ouviu a voz da voz soprando o seu ouvido.

Maurício fez a curva e puxou o carro para a esquerda entrando na rodovia. Agora seriam 32 quilômetros em um reta quase infindável. Ele sabia que lhe restava apertar o pé, mas não de mais. Só o bastante para que se mantivesse na velocidade necessária para chegar a tempo na cidade. Coisa de quem mora nos condomínios de Valinhos, mas trabalha em Campinas. Teria tempo. Tempo para cismar.

Nos grandes mitos da humanidade, o presságio não costuma evitar os sinistros. O Oráculo prevê, prediz, mas raramente logra driblar os caprichos do destino. Cassandra e Laocoonte sabiam do destino terrível de Troia e ambos tiveram um futuro igualmente fatal. Então, para que serve o pio da coruja?

Maurício não queria enxergar a resposta que dançava diante dos seus olhos. Mas, parecia-lhe evidente que não serviria para nada qualquer antecipação. O tempo costuma ser competente em cumprir o que se espera dele. O tempo passa e as ocorrências ocorrem. Pré-ciência é apenas uma forma de se sofrer antes e, portanto, mais. Os deuses são sádicos e se divertem com as agruras dos mortais. É o que somos, não? Apenas pets sob seus auspícios. Apenas hamsters correndo no mesmo lugar, de lugar algum para lugar nenhum. Atabalhoados, confusos, desconexos. Apegando-nos a qualquer promessa que nos ofereça qualquer segurança afável.

“Ninguém controla nada!”, pensou Maurício aumentando o volume da música. Robert Smith e seus arranjos. Poucos sabiam fazer arranjos como The Cure. Mas, a vida aceita pouco arranjo, não é? O inexorável sempre está lá, à frente, à espreita. E salta das moitas quando menos esperamos. É a pisada do mastodonte. A queda do meteoro. A barriga da baleia. O irrefutável, irrefreável, inevitável.

A consciência é troço doloroso. Foi o que entendeu Maurício. Há coisa na vida que se pode evitar e outras, impossíveis. Não há forças nos braços nem coragem no peito que traga escapatória para o inalterável. Não há nada escrito ou pré-determinado, menos o que virá. Nada está definido até que ocorra. Mas, ocorre. Sempre há algo que ocorre. O tempo passa e as coisas ocorrem. Às vezes, nada. Outra, tudo. Muitas, algo. É da vida, vida não aceita o silêncio, para sempre. Não há sempre. Há apenas esse agora, duradouro, intermitente, até o dia em que acaba. Porque dias acabam, como acabam as noites. Os dias anoitecem. Não há nada o que se fazer. Os dias anoitecem e as corujas gritam seu pio amaldiçoado.

Maurício estacionou o carro e suspirou. Havia chegado até ali sem que nada lhe caísse sobre a cabeça. Ele não estava esmagado nem dilacerado entre os ferros retorcidos do seu automóvel novinho em folha. Ele escapara, até ali. A rasga-mortalha, dessa vez, errou.

– Vai ter desgraça! – repetiu a avó.

Ele não conseguia tirar a maldita frase da cabeça. Mas dois-mais-dois é que deveria ser o lema do dia.

É que dois-mais-dois faz sentido, mas não dá conta de tudo. Há sempre o Sobrenatural de Almeida, do Nelson. Os homens de negócios com seus laptops a tiracolo o batizaram de “variáveis incontroláveis”, mais uma vez tentando controlar e encaixotar o que não é dois-mais-dois. O que é muito, tanto, a maioria das coisas. O homem de negócios é sempre um arrogante. Ele imagina que medir o tamanho da onda vai impedi-la de despencar sobre a sua cabeça. O homem de negócios se afoga fazendo contas.

-Mas, não vai haver nada, Maurício! Deixe de ser louco! Foi apenas uma mera coruja! Qual mal pode fazer uma coruja, homem?

Dois-mais-dois do homem do subsolo mais uma vez à mesa.

Maurício abriu a porta da academia com um sorriso aberto desfilando no rosto.

Foi naquele dia que o executivo de 33 anos se infectou. Era um vírus novo. Ninguém sabia ao certo. Duas semanas depois, Maurício morreu asfixiado pelos próprios fluidos. Alguém relatou que ouvira naquela noite um piado esquisito e o voo da rasga-mortalha.