https://www.maxfranco.com.br/cronicas/3588/

As lições da queda

03 de novembro, 2020 - por Max Franco

O punho veio tão veloz em direção à minha cara que nem sequer tive a chance de esboçar reação. Eu nunca havia levado um murro na cara em toda a vida e não sabia exatamente como deveria reagir à agressão.

Mas, a verdade é que deveria saber. Já fazia anos que treinava karatê, era o aluno mais esforçado da academia e sabia fazer todos o kata’s com uma precisão milimétrica. Entretanto aquele era meu primeiro torneio e o que sentia poderia ser muito bem chamado de nervosismo, mas a palavra nervosismo não traduz o ruído que fazia o meu coração antes da luta. Podemos bem apelidar de desespero.

Estávamos todos sentados em um círculo. Havia ali uns 16 garotos. Todos com 12, 13 ou 14 anos. Sabíamos que iríamos enfrentar um ou mais dos presentes e cada um estudava os seus potenciais adversários com um misto de medo e dissimulação do medo.

Em especial, eu temia certo garoto loiro que se encontrava exatamente à minha frente. O sujeito era um galalau nórdico de cabelos loiros que olhava para todos os demais com um sorriso de antecipação. Como alguém podia sorrir antes de uma luta de corpo a corpo, eu nem imaginava. Pelo meu lado, já me dava por satisfeito por não estar vomitando.

Naqueles dois anos nos quais treinava karatê, jamais tinha enfrentado ninguém, nem de brincadeira. Eu era o aluno mais aplicado da academia. Chegava antes, saía depois. Treinava como não tivesse mais nada a fazer na vida. Aos 12 anos, eu comia, bebia, respirava karatê.

Todavia jamais tinha lutado com alguém.

O árbitro do torneio apontou para o gigante à minha frente e ele reagiu se erguendo com um salto ágil. O sorriso brilhou ainda mais no seu rosto. De pé, o loiro parecia ainda mais alto do que era. O medo, porém, que nutria do viking se transformou imediatamente em terror. Podem chamar de coincidência. Já eu chamo de presságio. Mas, naquele momento, senti claramente que a vítima do sadismo do psicopata seria um garoto magrelo, franzino e aterrorizado que atendia pelo meu nome.

Tentei olhar para baixo, para o teto, para a rua. Mas, o árbitro não caiu no meu estratagema de fuga e me apontou com cruel insistência.

Fiquei de pé tentando não revelar que as minhas pernas tremiam. Alguém gritou “É covardia, professor! O menino é muito menor.” Para o meu desconsolo, o juiz ignorou a observação e indicou o início da luta.

Mal começou o embate, ele partiu para cima de mim como um leão partiria na direção de um cervo assustado. O murro me atingiu a boca e me fez sentir o gosto de sangue. Tentei não demonstrar abalo, mas acho que estava piscando em néon na minha face revelando que eu estava todo abalado. O segundo golpe não demorou, atingindo a têmpora esquerda. Não obstante, pior do que o murro foi a queda. E ainda pior do que a queda, o riso da molecada.

A luta, que mal tinha começado, acabou conforme o esperado. Sem surpresas.

E eu era definição da humilhação: derrotado, ridicularizado, o olho roxo, a boca sangrando, ao chão. Não deixava dúvidas de quem havia levado a pior. As lágrimas saltaram aos olhos, mas jamais me permitiria chorar diante daquela plateia que já me desprezava.

Eu me ergui, peguei minha mochila e corri para a rua, para a fuga, para uma vergonha sem público.

Diz o evangelho que “os humilhados serão exaltados”. São quase 40 anos que ocorreu essa famigerada disputa e ainda estou esperando a fase da exaltação. Se fosse um filme ou um romance, algum tempo depois, depois de muitas renúncias e de treinos infindáveis, haveria uma revanche e, decerto, uma gloriosa volta por cima. Mas, como dizia Renato Russo, “A vida não é filme. Viver é foda.” Jamais houve a oportunidade para essa desforra. Eu apenas peguei a minha dignidade em frangalhos e fui para casa encharcado de autopiedade mastigando as minhas lágrimas.

A Vida é assim. Tem hora que ela bate feito o menino aloirado. Com a mesma satisfação e crueldade. A gente pode esperar pelo momento do tal revide. Pode tentar com todas as forças. Pode usar de todos os expedientes que tem à mão. Mas, não é pelo fato de se querer muito alguma coisa que ela vá ocorrer. Às vezes, você apanha, apanha e precisa apenas aprender a lidar com o sangue, com a dor e com o chão.

Viver, muita vez, tem mais a ver com com o que fazer com chão do que com o céu.

A lona, por sua vez, ensina mais do que a glória.

Mas a queda oferece uma tentação e um risco.

A tentação é de continuar no chão. Um logradouro que oferece sempre uma segurança inabalável. Ninguém cai se já estiver no chão. O solo é a zona de conforto por excelência.

O risco – que é a segunda alternativa para quem desaba – ocorre para quem decide se levantar. A chance de ser alvo, mais uma vez, de um golpe arrasador é sempre maior para quem se reergue. Ele, afinal, já se demonstrou vulnerável.

A Vida, porém, oferece maiores realizações para quem se encontra de pé, mesmo que aqui e ali, escondidos nas esquinas dos dias, à espreita, há sempre sinistros, adversários esperando pela sua guarda baixa, pela sua fraqueza.

Eu sei. Sei na prática muito mais do que pela teoria. Sei porque não foram duas ou três vezes nas quais me encontrei na mesma posição. Cuspindo sangue. Derrubado na lona. Vencido. Humilhado.

O que fazer nessas ocasiões? Essa não é uma palestra motivacional. Não há conselhos, nem bulas nem manuais de conduta. Há apenas uma resolução resiliente, quase teimosa: levantar-se.

Mesmo ferido, combalido, cambaleante, levantar-se. Por quê?

Ainda não tenho essa resposta. Talvez porque de pé pareça doer menos.