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Cinco diálogos
01 de dezembro, 2020 - por Max Franco
DIÁLOGO 1 – Consultório
– Teremos que cortar.
– Todo? – perguntei angustiado.
– Não é grande coisa, né? Tem que ser todo. – disse o médico.
– E depois disso?
– Talvez não precisemos tirar mais nada.
– Talvez?
– Você sabe o que é gangrena, rapaz?
– Só pelo nome, não acho que é boa coisa.
– Não é. Vamos precisar de sorte.
– E se tiver que amputar…
– Vamos saber depois da cirurgia, na recuperação.
– Então posso perder o pé, doutor? Ou a perna?
– Melhor é tentar ser otimista, garoto! Vai dar tudo certo!
– E quando vai ser a cirurgia?
– Amanhã.
DIÁLOGO 2 – Quarto
– Como foi? – perguntou-me o irmão mais novo.
– Era ensaio para uma peça de teatro. A tábua na qual pisei se soltou, bateu em mim e voltou. Foi como uma tesoura, sabe? Meu pé foi achatado.
– Doeu?
– Se doeu? Eu conheço a lua.
– Imagino. Mas o que houve no hospital? A tia te levou…
– Para um posto de saúde do bairro. Mas, não me deram muita atenção. Depois piorou muito, veio a febre, o pé numa bacia de gelo noite e dia. O dedo ficou preto.
– E chegamos a este quarto de hospital.
– Pois é. Talvez eu perca a perna, sabe?
– Todos sabemos. O médico explicou. Mamãe pediu dinheiro emprestado para a tia para pagar a sua cirurgia.
– Eu odeio isso. Mamãe já trabalha demais. Costura até de madrugada quase todos os dias.
– Mas, qual a alternativa? Quer contar de novo com a saúde pública? Você já viu no que deu.
DIÁLOGO 3 -Sala pré-operatória
– Você vai perder? – perguntou a mulher que apertava o próprio pulso. A mão, toda coberta por uma gaze de onde escorria sangue.
– A perna. – disse a moça sentada à minha frente.
– Por quê?
– Atropelamento. Hoje cedo. Saí para a aula. Estava na parada do ônibus quando um carro subiu a calçada…
– Não acredito.
– Foi assim como lhe disse. Ele estava voltando da balada…
– Eu vou perder três dedos da mão. Acidente na fábrica. E você, garoto?
– Perna. Vou perder a perna. Talvez duas. – insisti.
– Como foi? – perguntou a vistosa estudante que ia ficar sem perna.
– Caminhão sem freio.
DIÁLOGO 4 – Sala de cirurgia
– Max Roger Franco Pompílio, nome de astro de cinema. – disse a enfermeira.
– Na verdade, meu pai gostava daqueles livrinhos de faroeste que vende nas bancas.
– Deite aí, garoto. Vamos anestesiar você e não vai sentir nada. – explicou o médico.
– Doutor, só tenho duas perguntas?
– Diga, rapaz!
– A minha carreira para o futebol, está acabada?
– Ao contrário. – comentou o médico, sorriso encoberto pela máscara. – Você vai ter um chute de quatro dedos que ninguém tem.
– Trivela 100%.
– Exato. E qual a segunda pergunta?
– Alguma chance de eu ficar com meu dedinho? Nem que seja como chaveiro? É que somos muito ligados…
Foi nessa hora que a anestesia fez efeito e parti para um sono cheios de sonhos esquisitos. Me lembro de que jogava no Vasco da Gama e recebia uma boa açucarada do próprio Roberto Dinamite. Puxei para o pé direito, o qual estava descalço. O chute de quatro dedos, porém, saiu estranhamente fraco. A bola quicou duas vezes para ser encaixada facilmente pelo goleiro. O Maracanã todo me vaiou por horas.
DIÁLOGO 5 – Enfermaria
– Como foi a noite, rapaz? – perguntou o médico enquanto tirava as bandagens do pé operado.
– O pé queimou muito, doutor. Praticamente não dormi. Mas o medo de voltar para aquela mesa me incomodou mais.
– O que o senhor acha, doutor? – inquiriu a mãe, a voz tremendo.
– Você evoluiu muito bem, garoto. Seu pé não poderia estar melhor. – falou o médico retirando duas toneladas de rochas dos nossos ombros. – Agora é só manter o tratamento e você vai ficar muito bem.
– Muito obrigado, doutor. Então, o futebol não vai perder um craque?
– Depende só de você!
– Não vou perder o equilíbrio?
– Claro que vai. Muitas vezes. Porém não será por causa da ausência do dedo. Por sinal, não deu para providenciar seu chaveiro.
– Eu vou me virar, doutor!
– Entenda, meu jovem. Você é um amputado. Mas, lembre-se: você perdeu um dedo. Poderia ter sido bem pior. Poderia ser do pé ou da perna. Porém há uma amputação muito maior. A da alma. Não deixe que a Vida ou que as pessoas roubem a sua alma, rapaz. Não há próteses de alma.
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