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As histórias que contamos para nós mesmos
13 de setembro, 2021 - por Max Franco
– O que faz aquela mulher diante dos portões do Palácio de Buckingham? – alguém decerto perguntou.
– Ela espera pelo rei. É a quinta vez que ela vem da França para esperar pelo rei.
– Pelo rei? Rei George V?
– Existe outro rei do Reino Unido?
-Ela está apaixonada por ele. Mas essa é parte normal da história. A pior é que ela bate o pé que o rei corresponde. A mulher afirma que ele envia mensagens cifradas que só ela entende. O rei, ultimamente, teria usado as cortinas do palácio para se comunicar com ela.
-Mas isso tem fundamento?
-Nenhum. O rei jamais falou com esta mulher. A verdade é que nunca nem a viu. O psiquiatra dela, Dr. Clèrambault chamou essa convicção delirante de erotonomia, que é a fantasia de que alguém de posição social mais elevada o ama.
A erotomania é pouco divulgada na literatura científica, entretanto não é tão rara quanto se considera.
Por que o temática da Síndrome de Clèrambault merece ser discutida na atualidade? Porque é mais uma faceta de “autostorytelling”, o nível mais complexo e emprego de narrativas que existe. A história mais determinante é aquela que contamos para nós mesmos. Essa é a narrativa que, de fato, convence e mobiliza. É a crença que cevamos, que pode ser de todo tipo. Pode ser limitante, mas também motivante. Pode nos incentivar a toda e qualquer atitude benfazeja, mas também pode nos convencer de que não somos capazes. A verdade é que tudo que nos motiva nasce de algo em que acredito. O problema é que achamos que podemos, racional e equilibradamente, escolher as nossas acreditanças, mas isso não é nem de perto verdade.
Mark Twain dizia que era mais fácil enganar um sujeito do que convencê-lo de ele foi enganado. Esta tarefa fica ainda mais desafiante quando o papeis de enganador e enganado se concentram na mesma pessoa. Afinal, fora as estratégias costumeiras de manipulação, ainda existem aquelas oriundas de patologias ou de deméritos cognitivos, tais como a erotomania, o escotoma, o efeito Dunning-Krugger, os delírios, as histerias, as psicoses e, para complicar mais, ainda temos todas as histórias falsas que a nossa memória costuma nos contar. O resumo desta ópera é simples, mas perturbador: se não é fácil acreditar nos outros, também nós não merecemos assim tanta confiança.
Sim, os outros mentem para você, e muito. Mas, você também não é inocente neste enredo, porque você também o engana, e muito.
Falemos do delírio, o qual, por sua vez, é uma crença fantasiosa, mas, inabalável, ou seja, uma convicção que resiste a todas as evidências de contradição. Há diversas manifestações conhecidas de delírio, tais como delírio de perseguição, de culpa, de grandeza, de infestação, de ciúmes, de negação, erótico, religioso, etc. Alguém pode, por exemplo, acreditar que está sendo perseguido pelos seus colegas de trabalho, ou que é um enviado de Deus, ou que seu parceiro é infiel, ou que uma determinada pessoa se apaixonou por ela. Acredita-se que privação sexual seja um mobilizador dessa condição.
A histeria faz referência a uma hipotética condição neurótica e psicopatológica, predominante essencialmente nas mulheres. Freud e Charcot estudaram intensamente a histeria e, segundo a Psicanálise, funciona como uma neurose complexa caracterizada pela instabilidade emocional. Os conflitos interiores são manifestados em sintomas físicos, como por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, comportamentos disfuncionais, desordens convulsivas, doenças psicossomáticas ou transtornos de personalidade. Pessoas histéricas costumam perder o autocontrole em virtude de pânico extremo. Os surtos de histeria coletiva (ou doença psicogênica de massa) ocorrem quando um grupo passa a ter sintomas ou reações semelhantes, de forma solidária a qualquer ocorrência imaginária ou exagerada.
Há casos de histeria coletiva registrados na história que continuam, até hoje, como mistérios.
Em 1518, há um caso de histeria coletiva que ficou famoso. É o caso de dança incontrolável que ocorreu em Estrasburgo, na França. Fao Troffea, uma moradora da região, começou a dançar na rua, sem qualquer motivo aparente nem música tocando. Há relatos de que seus passos duraram de quatro a seis dias, sem parar. Em uma semana, 34 pessoas já tinham se juntado à dançarina e, em menos de um mês, havia mais de 400 pessoas dançando freneticamente nas ruas. Pela que se conta, a maioria dessas pessoas acabou morrendo de exaustão ou por ataques cardíacos e derrames.
Em 1962, uma piada contada dentro de um colégio interno na Tanzânia causou que a população de diversas cidades na região de Tanganyika tivesse crises de riso incontroláveis, que só terminou 18 meses depois. Segundo pesquisadores, os alunos entraram em crises de riso após ouvir a piada, transmitindo a histeria para seus pais, que a transmitiram para moradores de áreas próximas. As risadas causaram inúmeros sintomas como dores, desmaios, problemas respiratórios, erupções cutâneas e até mesmo ataques de choro.
Escotoma, é uma expressão pouco usual, clinicamente refere-se a uma perda ou ausência de visão devida a patologias oculares. Na psicologia, usa-se esse termo quando alguém se afasta ou despreza a realidade, agindo como se não a estivesse vendo ou discernindo. Suponhamos que uma mulher esteja sendo traída pelo parceiro, mas se recusa a admitir essa realidade. Pode ocorrer de ela própria afirmar “Desde que eu não veja, tudo bem”. Por isso não se dá conta de ser enganada. Outro exemplo ocorre quando alguém diz “Não sei onde ponho as coisas”; “Não consigo encontrar” e “Esqueço-me com facilidade”, é comum que seu cérebro, automaticamente, aceite essa realidade e, de fato, ele não consiga encontrar o que procura.
Este fenômeno é mais complexo e atual do que parece. No advento da pandemia, foi ainda mais visível socialmente.
Outro departamento que vive “mentindo” para nós é o da memória. Nem sempre as lembranças, inclusive as mais vívidas, correspondem a situações reais. Estas reminiscências podem ser herdadas de outros ou resultado de “reconfiguração” pela mente. O mecanismo é explicado com fundamento em casos de plágio, autoplágio, “plágio” inconsciente e sugestionabilidade. As coisas das quais nos lembramos ocorreram – de fato – da exata maneira como as lembramos? Muitas vezes a memória nos prega peças. Não nos faltam, por exemplo, esquecimentos seletivos e lembranças editadas. Em suma: nem em nós mesmos podemos nos fiar.
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