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Não beberás
12 de abril, 2016 - por Max Franco
Estávamos, eu e um amigo cuja lembrança me aparece como um espectro, naquele indefectível bar decadente que nós, vez por outra na vida, acabamos por frequentar. (Mesmo que a posteriori o neguemos até a morte!)
Era um fim de noite miserável. Quatro mesas aqui e ali ocupadas por notívagos etílicos. Não me lembro por que estava ali e o que poderia existir de tão interessante no assunto que discutíamos que estimulasse a nossa presença naquele fim de mundo. A verdade nua e crua é que estávamos ali somente para beber.
A noite se encaminhava para a boca da madrugada quando um homem se ergue da mesa e, cambaleante, se encaminha para o seu carro. Devo confessar que não me lembro qual era a marca do seu carro. E, de fato, isso importa patavina. Lembro-me, no entanto, que ele deu ignição ao motor e, em vão, tentava tirar o veículo da vaga onde havia estacionado.
Já havia sido uma verdadeira façanha o homem ter conseguido chegar até o carro. Entretanto, tirar o carro dali estava parecendo uma impossibilidade.
O homem trazia o carro para frente e para trás ininterruptamente, tentando evitar colisões com os veículos da frente e de trás. Para a imensa diversão dos bebuns que assistiam à cena entre risadas.
(Devo confessar que eu também me divertia com o vexame do embriagado!)
Foi aí que o dono do estabelecimento completamente trajado de dono daquele tipo de estabelecimento deu um violento tapa no balcão e despejou sobre nós a sua ira messiânica:
– O que vocês estão fazendo, camaradas? – gritou o galalau fechando a camisa que insistia em permanecer completamente aberta lhe denunciando a barriga enorme. – O que vocês estão fazendo? Vocês não vieram aqui pra beber? Alguém veio aqui pra rezar? Não estão bebendo igual ao cidadão daquele carro? Então, por que estão rindo do outro? Alguém vá ali e tire o seu carro para o homem poder ir embora! Quem bebe, senhores, não pode falar de quem bebe! – concluiu o homenzarrão.
Nem preciso dizer que não demorou três segundos para alguém correr até o carro e livrar o bêbado do seu calvário. Preciso?
Devo dizer que fui para casa com aquela frase me retinindo na cabeça, “quem bebe não pode falar de quem bebe! “. Praticamente evangelho. Praticamente Confúcio. Praticamente Aristóteles, ou Platão, ou Rosseau, ou Spinoza.
Imagine em que mundo maravilhoso nós viveríamos se adotássemos a filosofia de vida daquele dono de bar. Decerto seria um mundo mais tolerante e mais tranquilo, menos hipócrita e menos agressivo.
As pessoas se julgariam menos.
E se aturariam mais.
As pessoas se atacariam menos.
E se perdoariam mais.
Num planeta onde “quem bebe não pode falar de quem bebe” reinaria a compreensão e, quem sabe, em virtude da ação lenitiva do entendimento recíproco poderia nascer algum crescimento coletivo, alguma promoção humana, alguma redenção.
Não defendo a extinção das punições nem faço apologia a um laissez faire idiota. Há, obviamente, limites para as indulgências.
Digo apenas que, num lugar onde “quem bebe não pode falar de quem bebe”, quem sabe, os bêbados se ajudariam, se amparariam até poderem caminhar eretos, seguros, certos.
E não viveríamos mais como trôpegos escondendo desequilíbrios. Camuflando escorregões. Escondendo quedas.
É o que declara, de forma rústica, o homem do bar: somos humanos, senhores! Todos somos falhos, fracos, decaídos, potencialmente falíveis.
Hoje, tantos anos depois, essa frase ainda me assalta. Toda vez que nasce um impulso pretensioso em mim. Toda vez que estou às portas de me conceder alguma auréola de santo, ou de cetro de rei, eu ouço aquela voz me repetindo: “quem bebe não pode falar…”.
Os generais e imperadores que retornavam vitoriosos a Roma depois de conquistas espetaculares e batalhas heróicas entravam na cidade ovacionados pela multidão e pelo senado. No entanto, traziam na sua biga alguém que lhe dizia no seu ouvido: “Lembre-se que não és imortal! Lembre-se que não és imortal!
– Isso é maravilhoso!
Quem dera tivéssemos esse auxílio no nosso cotidiano! Alguém que sussurrasse no nosso ouvido toda vez que a arrogância nos apossasse: segura a sua onda, cara! Você não é deus! Você é frágil e limitado como todo mundo! Você é apenas e tudo isso: humano!
Atualmente, não sou um espécime especialmente religioso, não obstante, não acredito que isso retirou muito do meu cristianismo. Ainda acredito que o Amor e o Perdão são os elementos mais sublimes que a alma humana podem produzir. Não acredito, porém, em nada mágico ou sobrenatural.
A história da humanidade comprova: Muita coisa na religião serviu mais para dividir do que para unir, e mais para provocar discriminações do que para agregar.
O problema é que, na maioria das vezes, quem crê se acha melhor do que aquele que não crê. É o célebre efeito “eleito”. Os eleitos são sempre os privilegiados por deus que os escolheu e acolheu com a sua própria mão piedosa. Já os demais, coitados…
Vi muitas vezes a fé religiosa segregar mais que acolher. Cansei disso.
Hoje o meu pastor é aquele homem do bar. De camisa aberta, barba gordurosa, pança proeminente, cabelos desgrenhados, pés nos chinelos esfarrapados, bermuda puída e mãos calosas. Um São João Batista moderno pregando no deserto. Divulgando aos berros a sua boa nova: somos humanos, amigos! Compreendamo-nos! Perdoemo-nos! Ajudemo-nos!
E eu por fim retrucaria:
– Certo, João, mas me traz mais uma cerva gelada e um espetinho de maminha!
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