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Marca de toda gente é bondade
26 de abril, 2016 - por Max Franco
Conto premiado em 1o lugar – Prêmio Estadual de Literatura (Melhor conto) Ideal Clube 2013
– Uma esmola, pelo amor de Deus! – gemeu a pirreta repetindo a antiga cantilena enquanto se arrastava mais para cima dos degraus da escadaria que se estendia como uma língua aberta da boca da Catedral de São Luís. – Esmola, moço, por Nossa Senhora!
O homem percebeu a meninota esquálida e estacou de súbito ao notar a crueza da cena que lhe assaltava. Precisou apenas de um breve inventário para reparar na menina e nas suas pernas deformadas, flexionadas de modo improvável e inúteis. O cabelo desgrenhado deixava vislumbrar o castanho enferrujado de outrora. Já hoje, caía mais para um preto nauseante de sujeira. Moscas sobrevoavam e pousavam sem resistências no seu rosto lambuzado por um amálgama revoltante de catarro, poeira e restos de comida envelhecida.
– Dez centavos, moço! – inquiriu a pixota lhe esticando uma mão ensebada. – Não vai lhe fazer falta.
– Meu anjo, o que houve com as suas pernas?
A garotinha baixou os olhos na vã tentativa de esconder a sua vergonha. E como resposta não apresentou nada além de uma mudez resignada.
– Tudo bem se não quiser me contar o que houve, princesinha. – disse o outro sem conseguir tirar os olhos das pernas destruídas da menina. – Mas, me diga, quantos anos você tem?
– Não sei dizer com certeza. Meu pai diz que é nove. Tia Dorinha diz que é oito. Já a minha avó fala que todos são abestados e que, de vera-de vera, tenho dez anos.
– E como… Como você se chama? – interrogou o homem evitando a pergunta que realmente desejava repetir.
– Me chamo Daiane e, se quer mesmo saber, nasci endireitada, seu moço! – respondeu afinal a menina. – Nasci com aleijão não. Mas, a fome era grande e sabe como é. A fome desembestada não respeita perna, nem olho, nem nada.
– Mas, foi a fome que lhe deformou as pernas desse jeito?
– É uma história grande, meu senhor. Você não vai querer saber.
– Claro que quero. Nunca vi a fome causar uma lástima dessas.
– Então, me pague uma garapa e um pão passado que lhe conto a minha desinfelicidade toda.
O homem meneou a cabeça positivamente e, escoltado pela garotinha intrigada, se encaminhou para a esquina.
Os dois formavam uma dupla improvável, a qual dificilmente poderia contrastar mais. Ele, alto, alvo, forte, atlético e distinto, emanava tanta saúde quanto um cavalo de corrida. Ela, ao invés, toda pouquinha, macérrima, moreninha, boca faltando dente, cabelo pedindo pente. A própria petição de miséria personificada. E foi só com grande dificuldade que conseguiu se içar até a lanchonete da esquina.
– Foi queda, moço! – soltou a menina com um grande naco de pão saltando dentro da sua boca. – Eu era pequena. Levei uma baita queda.
– Eu conheço essas coisas, Daiane. E sei que isso não foi tombo nenhum! Por que você não me conta a verdade?
– Porque não posso contar nada. É segredo… – hesitou a pequena pedinte.
– Pois me diga apenas quem machucou as suas pernas até elas ficarem desse jeito?
– Como você sabe que foi alguém que me bateu? – soltou a menina se engasgando com o suco de caju.
– Já lhe disse, pequena. Eu conheço essas coisas. Então, quem foi? Ele ainda lhe machuca?
– Não posso falar, moço! – gritou a menina com os olhos marejando. – Você não entende? Não sabe o que ele é capaz de fazer se souber que eu falei pra alguém.
– Tudo bem! Tudo bem! E se eu prometer que não conto para ninguém? Nem… Nem para a polícia.
A menina socou o resto do pão na boca e atirou o copo de vidro no chão estraçalhando-o em mil pedaços.
– Você não sabe é de nada, moço! Você não sabe o que ele fez com os outros. – despejou a garota e, o mais rápido que o seu pobre corpo conseguia, precipitou-se sem avisos para fora da lanchonete.
– Não vou lhe comprometer, Daiane. – disse ele seguindo-a sem pressa.
– Não vai o quê?
– Não vou deixar seu pai lhe machucar mais!
– Como você sabe que foi ele? – perguntou ela, atônita. – Quem foi que lhe enredou?
– Ninguém contou nada, mocinha. Eu já lhe disse. Eu sei das coisas.
– Ele quebrou sim, moço! – disse ela aos prantos. – Eu era só um bebê e ele pegou uma barra de ferro e várias vezes bateu nas minhas pernas. Quando eu ficava boa ele vinha e fazia toda a desgraceira de novo!
– E com os outros? Que outros? Seus irmãos?
– Sim. Claro. Eu talvez tenha tido até sorte. A pobre da Gleiciane foi cegada. O Toninho ficou todo queimado. A Clotilde, que é maior, faz ponto na rodovia. Desafortunado tem mais sorte na rua. É o que repete meu pai. Desafortunado é que tem sorte na rua!
– E todo mundo traz dinheiro para ele todos os dias?
– Pra ele gastar com rapariga e cachaça, seu moço!
O homem calou-se por alguns segundos e estalou a língua com reprovação.
– Pois eu quero conhecer o seu pai, Daiane. Quero agora. E você vai me levar lá.
A mendiga até considerou a possibilidade de negar a solicitação do seu interlocutor, mas a veemência exposta no seu rosto desvaneceu todas as reservas dela.
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– Isso é hora de voltar pra casa, garota? – esbravejou o galalau cuspindo tanto fonemas quanto saliva.
– A responsabilidade disso é minha, Seu Genivaldo! Não precisa brigar com ela.
– rebateu o homem com segurança ao mesmo tempo em que apertava com firmeza a mão do negrão surpreendido.
Estavam, então, na calçada defronte a uma casa mal equilibrada no bairro de Santa Rosa.
– Mas, quem é esse moço, menina? – indagou o pai esticando o olho de ganância. – Você não me diz nada…
– Não sou cliente dela, Seu Genivaldo! Na verdade, quero ser é seu!
– Não estou entendendo nada dessa estória de cliente, cidadão! – retrucou o varapau, se certificando se algum passante teria ouvido alguma coisa. – Vamos fazer uma coisa: vamos entrar um pouquinho para a gente tratar.
Daiane fez até menção de acompanhá-los, mas desistiu ao notar um sinal quase imperceptível do pai.
A esperança brilhou nos olhos da menina como nunca antes acendera. A menina ainda não acreditava na própria fortuna. Ela que, desde miúda, se considerava imune a todo tipo de sorte teria agora um acaso que lhe sorrisse? Deus teria notado a sua existência? Depois de todo o sofrimento atroz, diário, freqüente, intenso, inadiável, pelo qual padecera, enfim ela desconfiava de que o destino poderia não estar tramando contra ela.
“A sorte não abandona quem tem esperança!” – era o que pensava quando os dois, sorridentes, deixaram a casa.
– Daiane, arrume as suas coisas que você vai com o moço. Estou entregando você de vez pra ele.
Ela não se continha de felicidade.
– Pra dizer a verdade, menina, não vou levar só você. – emendou o homem com um sorriso benevolente boiando no rosto. – Seus irmãos vão todos comigo!
Foi aí que a pequena inválida sentiu uma explosão de alegria sem par rebentando dentro do peito. E ela era feita, toda, de sorriso.
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– “A sorte não abandona quem tem esperança!” – decretou a menina para os irmãos quando entraram na nova casa.
– Não existe sorte, maninha! – declarou Toninho marcado por cicatrizes de queimadura por quase o corpo inteiro. – É Deus quem cuida dos aflitos! É Deus!
– Obrigado, Daiane! – disse a menina com os olhos cegos minando lágrimas abundantes. – Você salvou a gente, Daninha. Você que salvou!
– O dormitório de vocês é ali à direita! Venham logo que já estamos de saída. Aqui não tem moleza! – berrou uma mulher com voz e jeito de sargento.
– E nós vamos pra onde, moça? – interrogou Daiane com açúcar na voz.
– Hoje o destino é a Lagoa da Jansen. – respondeu a sargenta com a voz rascante.
– Oba! Diversão! – festejou o garoto erguendo as mãos deformadas.
– Tá comemorando o quê, garoto? – gritou a mulher com uma nota flagrante de escárnio na voz. – Acorda, cara de maracujá! Você acha o quê? Que está aqui de férias? Que eu sou o clone da Madre Tereza? Você terá de pagar cada bocado de comida que vai pôr nessa sua boca nojenta, menino!
– Pagar? – indagou a garota. – Pagar com o quê? Como assim?
– Doutor Ariston não lhe disse nada, aleijadinha? Vocês vão pagar com a esmola que aquele bando de idiota vai dar pra vocês. Você não sabe de nada. Mas como saberia de alguma coisa? O seu pai vendeu vocês para o doutor, burrinha! Você trabalhava no varejo. Agora vai ser no atacado. Foi só isso que mudou! A diferença é que o pau aqui come se não houver o dinheiro no fim do dia, e desgraçado que não traz a grana vira defunto no fim do mês. Se você não quiser ver seus irmãos se tornarem indigentes encontrados na lagoa do Opaia, trate de mostrar trabalho! Seu pai vendeu vocês, arremedos de gente, e agora vocês vão para a rua.
– Não entendo! Ele parecia tão bom… – lamentou a aleijada. Não estou entendendo mais nada.
– Doutor Ariston chega a trazer não-sei-quantos ônibus do interior apinhados de velhos acabados e leva todo mundo pro batente. O que existia antes era artesanato, garotinha! Agora vai virar indústria! Era varejo, agora, atacado. Pois então, entrem no ônibus e calem a droga dessa boca! Vocês têm é sorte porque terão um teto sobre as cabeças e algo pra comer. Ralé não merece mais do que isso!
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