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Água e Terra
20 de janeiro, 2025 - por Max Franco
Havia este seriado americano na década de 80 chamado o “O homem do fundo do mar” ( The man from Atlantis, 1977 ). Os episódios da série eram veiculados, semanalmente, aos domingos, e eu costumava acompanhá-los na TV preto e branco da casa dos meus avós, porque minha mãe levava seus três filhos a tiracolo para essas visitas de tarde inteira.
Em suma, o protagonista, o tal homem do fundo do mar, de nome “Mark Harris, conseguia superar seus desafios fantabulosos quando estava na água ou quando tinha contato com água, porque o líquido lhe concedia superforça. A água era o seu espinafre. Todos nós, espectadores do seriado televisivo, sabíamos que era só questão de tempo para que Mark entrasse numa enrascada qualquer, mas que, mais cedo ou mais tarde, ele iria dar um jeito de escapar da armadilha encontrando água em algum lugar improvável. Nos tempos atuais, ele não teria grandes problemas em virtude dessa simpática mania de todos portarem garrafas d’água em todo tempo e lugar.
Lembrei-me deste programa de TV justamente quando estava numa piscina com meus filhos e minha mulher nesses dias de recesso de início de ano.
Eu lhes dizia que, depois daqueles dias de praia, estava pronto para retornar para o trabalho e para São Paulo, porque tinha mergulhado na água de que tanto sentia falta. Essa foi uma das descobertas desses dias e um grande exercício de autoconhecimento, porque me dei conta de que somos quem somos pelas experiências que temos e que não temos, como também somos o que fazemos com certa frequência e o que nos faz falta. Aquilo pelo qual anseio fala muito do que sou.
Agora que o giz dos anos me embranquece a barba e os cabelos, compreendo que podemos atribuir à Vida um conceito bastante inquietante: a Vida é uma contínua busca por descobertas, internas e externas, que se retroalimentam. Quanto mais me conheço, mais entendo os outros, as relações e o mundo que me rodeia. Da mesma forma que o inverso também funciona lindamente. A Vida, portanto, pode ser uma longa viagem para dentro e para fora. É caçada e garimpo ou passeio e prospecção. Dessa forma, olhar-me ajuda-me a olhar.
Essa cisma intradomiciliar me levou a perceber o que faz parte de mim até o meu âmago e o que sou porque me faz falta. A minha água, então, tem a ver com o meu habitat, meus afetos; com o lugar em que me criei, Fortaleza; com o meu linguajar repleto de vogais fortes e desavergonhadamente abertas; com os sabores típicos da minha terra, o peixe e moqueca de arraia na praia, os cajus e sapotis geladinhos, os sucos de cajá e graviola; e com os hábitos que cunharam o sujeito que sou, como o jogo de bola descalço na rua, as leituras, as músicas de Belchior e Fagner, e as histórias contadas e recontadas ao lado de amigos de uma vida inteira.
Eu sou do meu lugar e sou o meu lugar. Sair do Ceará me fez um cearense embrenhado da sua cearensidade, ao mesmo tempo em que sempre busquei o mundo, como boa parte do meu povo sempre fez. Cearenses são errantes.
Essa é a minha água.
Por isso, preciso, de vez em quando, acompanhar o Ednardo cantando “enquanto engomo a calça”, preciso sentir nas papilas da minh’alma o gosto salgado peculiar da paçoca, preciso amar e abraçar meus filhos, irmãos e amigos, preciso ouvir o “macho” dos entes queridos, preciso sentir a brisa do mar assoviando entre os meus cabelos, preciso escutar o nosso jeito cantado de falar na voz da minha mulher, preciso ler Alencar poemando sobre os mares bravios da minha terra natal.
Eu sou o que sou, o que vivi, e o que sei e sei que sou nordestino, cearense, fortalezense. Sou do meu bairro, da Parangaba. Sou da minha rua, Júlio Gaspar. Sou da minha casa, 112. Sou Franco Pompílio de berço, filho da Cleide e do Zequinha. Irmão do Jean e do Vinicius. Amigo de alguns. Pai do Arthur e da Ingrid. Tutor da Vasquinha. Marido da Rebeca. Sou a soma de tudo isso e a intercessão de inúmeras acontecências. Sou viajante inveterado, curioso de nascença e aberto para as maravilhas do mundo, e sou da minha terra.
A minha água, então, é terra.
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