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As pessoas e os lugares
16 de junho, 2016 - por Max Franco
“Eu não sou nada
Eu nunca serei nada
Eu nunca vou querer ser nada
À parte isso, eu terei em mim todos os sonhos do mundo” (Fernando Pessoa)
Contemplo a paisagem do outro lado da janela do ônibus naquele afã gratuito de segurar os lugares. Os lugares da minha vida que estão sempre vindo e indo. Lugares deslugarados sempre vindo e ficando enquanto eu, passageiro, passo. Olha eu aqui novamente acumulando quilômetros no meu programa de milhagem pessoal. Na estrada, empenhado no exercício de ganhar e perder paisagens, cantos, casas, gentes e momentos.
Olha a ponte cruzando o lago iluminado. Olha o cachorro enregelado, tremulento, língua pra fora caçando coisa pra por na barriga esmilingüida. Olha a senhorinha vendendo doces flagrando no profundo dos olhos as rugas dos sentimentos economizados por uma vida inteira. Olha o mato, a pista, os postes, os pastos, o pássaro, as flores, o cheiro, o cheiro, o cheiro.
Aprendi na rua que lugares têm cheiro e têm cheiros que vão sempre me faltar.
Loppiano. Vilarejo incrustado entre as colinas da Toscana onde morei na época em que era jovem e sabia que era jovem. Nada me emocionou mais quando lá retornei, anos depois, do que o aroma único do lugar. Lembro-me ainda do assalto do cheiro me invadindo as narinas, a mente e memórias que nem mais sabia que recordava. Lembro-me de ter – enfim – lembrado. Da cor e do calor que eu ostentava na face convictamente aberta num sorriso eterno e na alma-prateleira onde metodicamente eu organizava todas as boas intenções e sentimentos valorosos que um ser humano um dia poderia alimentar. Lembro-me das lembranças, e da vigência das lembranças. E de ter escorregado num choro comedido, porém sincero. Choro patrocinado pela saudade mais de mim do que de fatos, coisas ou pessoas. Foi bom ter me conhecido naquele tempo. E é uma pena que o tempo tenha deixado para trás alguém com um caminhar tão firme e inocente. A juventude tem dessas coisas. A juventude, de tão fervorosa, acaba gastando o fervor. Sei lá… De repente, certezas são inversamente proporcionais às rugas que, penosamente, se agregam. Quisera houvesse um elixir, não só da juventude, mas da ingenuidade. É que as cores são mesmo mais bonitas quando os olhos que as vêem não são dotados de filtros muito céticos, nem das risíveis membranas erigidas pelo cinismo. Nada mais inebriante do que o olhar de surpresa, o fascinante susto da primeira vez, a única, inimitável, irrepetível emoção do debut. Só as debutantes são belas, e mornas, e frescas, e divinas. Viço não se fabrica nem se reproduz em laboratório.
Definitivamente, não estamos preparados para a experiência.
Tantas pessoas e lugares vieram e se foram. Olha a casa. Foi-se a casa. Olha a árvore. Foi-se a árvore. Olha o homem de olhar melancólico. Não foi pra lugar algum. Ele continua ali pendurado na janela olhando cansado para mim. Bolsas pendendo sob os olhos semicerrados, cabelo rareando, papada oscilante e bochechas que aparentam que, mais cedo ou mais tarde, repousarão resignadas sobre os ombros caídos. Ele está sempre ali me refletindo e refletindo, às vezes macambúzio, às vezes até sorridente. Entretanto, sempre ali me acompanhando e se misturando com as coisas, se fundindo às coisas, gentes e lugares.
Eis que percebo que, na verdade, assim como o meu reflexo não me abandona também não me abandonam pessoas e lugares. Estarão, seus espectros – aprazíveis ou desprezíveis – sempre ali, à mão. Basta acessar a pasta das reminiscências. Eles fazem parte de mim. São meu acervo. Minha herança. A imagem na janela se mistura às coisas do caminho. Somos um só.
Também me forço a crer que tanto de mim ficou espalhado – por sorte ou azar – em tanta gente ou lugar. Tudo junto e misturado.
Quem sabe não somos mesmo parte de tudo, parte do todo e o todo, parte de nós?!
– Não serei eu ali na beira da estrada acenando pra mim?
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