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A erosão do educador

01 de dezembro, 2024 - por Max Franco

Não sei se houve alguma época em que foi fácil se viver. Eu apenas vivi esta. Também não acho que seja a mais difícil de todas. Difícil era acordar no mato todos os dias e ter que correr de bicho, correr para caçar bicho, porque naquele período, realmente, viver era um bicho-de-sete-cabeças. Mas cada momento tem as respectivas lidas e nós, nesses complicados anos vinte, temos as nossas. Harari, no seu último “Nexus”, afirma que a História não o estudo do passado, mas o estudo da mudança. E sempre é este o nosso maior desafio: lidar com o que não estamos acostumados.

Eu – por exemplo – tenho quase quarenta anos de trabalho com Educação. Quando comecei, literalmente, eu usava uma pedra para escrever noutra pedra. Os professores usavam batas, porque estragavam todas as suas roupas com o desgraçado do pó de giz que era onipresente. Hoje, temos computadores, tablets, lousas digitais, laboratórios, salas makers, tecnologia 3D, projetores, plataformas virtuais e mais não-sei-quantos apetrechos que fica até difícil enumerar. Não é verdade, portanto, que a Educação mudou pouco nesses anos. Mudou deveras e mais no campo tecnológico do que no metodológico. Porém mudou.

Quer se dar conta de outra das maiores mudanças? Digo-lhe: no atatus do professor.

É bem verdade que professores jamais tiveram no Brasil a reputação que têm na Finlândia ou em outros países desenvolvidos. Não obstante, o decréscimo de prestígio que ocorre nas atualidades com os educadores chega às raias do inaceitável. Não sei se há outra classe de trabalhadores que perdeu tanta credibilidade quanto aqueles que, até uns anos atrás, eram chamados de mestres.

E o pior é que o educador virou o bode expiatório mor da nação. O Pedrinho não come vegetais. Culpa de quem? Joana não faz amigos. É a escola que não estimula. Enzo não sabe multiplicar? Foi o professor de matemática que não o motivou. Mariana diz palavrão e chutou o Henrique no condomínio. Decerto aprendeu tudo isso no colégio. Vai ser difícil de encontrar alguma mazela social que não possa ser imputada à escola. E – por tudo isso – o professor virou mordomo oficial do planeta. Professor é vocábulo que já denotou título de honra. Hoje pode ser dito com discriminação.

-Isso é um exagero! – alguém dirá.

Pois lhe desafio, caro alguém: cite outro profissional que seja mais criticado, questionado, vigiado, sondado e patrulhado do que o professor?

E ainda nem tratei das polêmicas questões ideológicas, políticas e da agenda woke. Afinal, qualquer educador brasileiro com o mínimo de noção sabe que deve evitar temáticas sensíveis que possam associá-lo a determinadas causas sociais. É que professor rima com militante ultimamente.

Há também outro risco diário, o da judicialização. Professor em 2024 tem advogado de plantão, porque se ainda não foi processado, é só uma questão de tempo para sê-lo. Amanhã, vão acusá-lo de qualquer coisa, mas o mais comum é do tal constrangimento. Ninguém é mais constrangível do que aluno. Ninguém é mais ofendível do que família. Basta uma mera frustração ou a negação de uma demanda qualquer para os gremlins se transformarem.

Ninguém está dizendo, em contrapartida, que não houve excessos causados pela escola. Professores tinham palmatórias até poucas décadas atrás, e tinham autorização para usá-la. Todavia, enquanto meu pai apanhava na escola e se ajoelhava no milho, hoje não é raro ler notícias estarrecedoras de professores que são agredidos nas escolas nas quais trabalham. O fato é que, mesmo poucos tendo a coragem de dizê-lo, educadores saem de casa com medo, trabalham com medo e retornam para suas casas ainda mais apavorados com qualquer coisa que possa ser usado contra eles. Professores vivem na corda bamba.

Cuidado e prudência são artigos obrigatórios em qualquer profissão, contudo medo e ansiedade nunca são elementos positivos quando se trata de criar ambientes saudáveis. Pelas últimas pesquisas, a classe dos educadores aparece no topo da lista dos profissionais mais sujeitos a desenvolverem complicações psicológicas e, principalmente, burnout. E essa é a verdade: as escolas viraram ambientes tóxicos e adoecedores para muitos professores. Inclusive porque, além de todas as inúmeras dificuldades, ainda há pais que acham que o chicote é melhor instrumento para ser usado quando tratam com os educadores dos seus filhos.

Não sei quem convenceu as famílias a instituir este clima de terror em relação aos professores dos seus filhos. Não sei como um ambiente em que o pavor e o assédio moral imperam pode ser visto como pedagógico. Não é disso que precisamos para melhorar a Educação. Precisamos aprender a trabalhar juntos, com diálogo aberto, confiança mútua, formação contínua e parceria. Família, estudante e educador devem ser – todos e o tempo inteiro – repeitados. O professor é a autoridade do seu espaço e não servo.

Se a maior mudança quando se fala em Educação é a erosão do prestígio do educador, precisamos mudar essa mudança e transformá-la em respeito recíproco, cada um no seu papel, porque nada pode ser mais constrangedor para um professor do que essa prática, que se torna cada vez mais habitual, de qualquer um se considerar capaz de  ensiná-lo a fazer o seu trabalho. Qual outra profissão sofre semelhante assédio?

Não há, afinal, Educação real sem professores autônomos, preparados, éticos e orgulhosos em virtude das funções que exercem.

Não há, também, alunos felizes com professores angustiados, ameaçados e humilhados.

Para concluir, me lembro de certa ocasião em que uma mãe, já conhecida por menosprezar publicamente a escola e seus educadores em todas as ocasiões que lhe aprouvesse, me procurou para uma conversa. Ela me relatava que o seu filho adolescente não mais a escutava, nem obedecia. O garoto não aceitava mais ser contrariado em nada e, por isso, não queria mais estudar nem assumir qualquer responsabilidade. Ultimamente tinha começado a agredi-la verbal e fisicamente.

-O que eu faço, professor? A escola pode me ajudar? – perguntou-me ela com lágrimas inundando seus olhos.

Eu lhe respondi que iríamos, todos, nos esforçar para resgatar o seu filho, mas tinha algo também a dizê-la:

-Mas, depois de tudo, depois de termos sido sempre tão duramente questionados, criticados, invalidados e diminuídos, ele ainda vai nos escutar?

É recomendável, portanto, algum cuidado antes de se cogitar fogueiras para os educadores. Você pode precisar deles.