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A megera sorte
15 de maio, 2017 - por Max Franco
CONTO AGRACIADO COM “MENÇÃO HONROSA” NO 19o PRÊMIO IDEAL CLUBE DE LITERATURA.
A megera sorte
Despertei no tapete da sala. Um gongo soava grave no alto da minha cabeça que, veemente, reclamava toda a minha atenção. Foi com exasperação que olhei para o relógio e o resultado foi uma sensação ácida de algo gelado crescendo no meu estômago. Faltavam quinze minutos para a minha mulher chegar. Essa era a boa notícia. A má, era que a outra ainda estava na minha cama, desacordada, morta, dormindo, sei lá. Sabia apenas que estava nua.
– Acorda, Jéssica! Acorda e se veste! – gritei percebendo que eu mesmo não estava nos trajes mais adequados, mas vestindo sumariamente a calcinha vermelha da minha mais recente amante.
Posso ser acusado de muita coisa, no entanto, ninguém nunca me apontou o dedo em riste e me chamou de azarado. Pelo contrário, sempre tive a doce impressão de que a Sorte nutria uma antiga quedinha por mim, de tanto que ela costumou sorrir para o meu lado. Imagine a decepção que me assaltou quando, justamente no instante em que mais preciso dela, percebo que aquela que – desde tenras épocas – habitualmente flertou comigo, de repente, sem aviso, bilhete ou SMS de despedida, se encheu de mim, abusou e se foi patrocinar outra freguesia. E como foi fácil de me dar conta disso. Bastou ouvir o toque enjoativo da campainha e o som de uma voz desagradavelmente conhecida.
– Tiago! Está aí?! – era o meu sogro. – Acorda, desocupado!
E agora? Como eu ia explicar para a versão caririense do Joseph Ratzinger que tinha uma mulher nua e embriagada na minha cama? E logo aquela mulher!
O jeito era se fazer de morto. E foi o que eu fiz. Me joguei no chão da cozinha e fiquei por lá. Calado. Mas não totalmente. Rezando. Para quem? Para alguma Nossa Senhora padroeira dos adúlteros, safados e licenciosos como eu. Deve haver. Lógico que deve. Havia tantos por aí, como eles poderiam ficar desamparados de Nossa Senhora?
– Acorda, homem! Eu sei que você está aí! O seu carro não veio para casa sozinho, veio? – dizia o homem parado no meu jardim.
“Pensa! Pensa, desgraçado!”
– Major! – gritei enquanto me cobria com uma toalha e molhava os cabelos. – Estava no banho. – disse abrindo a porta. – Estava no banho, Major! Mas que surpresa ver você por essas bandas!
– Surpreso fiquei eu ao passar aqui na rua e ver o seu carro estacionado. – comentou ele, me escaneando dos pés à cabeça. – Não era para você estar na empresa nesta hora?
O filho duma égua do velho sempre tivera desconfiança de mim. Por ele, nem sequer teria me aproximado da sua dileta filha. Por ele, nunca e em nenhum momento eu trabalharia na sua empresa. Por ele, na verdade, a sua filha estaria melhor sendo monja no Nepal do que sendo minha mulher. O pior é que inclusive eu não conseguia discordar muito dele.
– Virose, Major. – disse massageando a barriga proeminente por cima da toalha verde-limão. – Não consegui sair do banheiro desde ontem! O senhor acredita que fui dezessete vezes…
– Não quero saber, Tiago! Deixa para lá os detalhes hediondos. Mas, e aí, não vai me convidar para entrar? Sei que a Sônia deve estar já para chegar. Ela me enviou uma mensagem do aeroporto.
– Vai chegar. – concordei, quase às lágrimas.
– Ela me disse que você não ia buscá-la por causa do trabalho…
– Realmente. Sabe aquele contrato com o pessoal da Dias e pias?
– Você faltou à reunião com o pessoal da Dias e pias? Estamos esperando faz seis meses por essa reunião.
– Ela vai ser amanhã. Eu só estava enganado com a data e pensava que seria hoje, por isso não fui buscar a Soninha no aeroporto. O senhor quer água ou alguma coisa?
– Quero entrar. Posso?
– Entrar onde?
– Na sua casa. Na verdade, na casa que eu dei para a minha filha viver com você.
– E que nós aceitamos com tanto gosto, Major!
– E, então…
– Então, o quê? Ah, sim, claro. O senhor pode entrar. Sente-se, por favor!
– Eu preciso pegar uma coisa no quarto. É lá que ficam as malas, não é? – disse o homem se dirigindo para o quarto.
Foi aí que decidi apelar para a ignorância porque a coisa já estava ficando descontrolada. O diabo é que não vinha à cabeça nenhuma ideia salvadora nem mais nada que pudesse me valer.
Se o meu sogro, ao menos, fosse um homem comum. Destes de carne e osso, como 99,99% da humanidade dotada de testosterona é, eu teria alguma chance. Ao menos ele cultivasse os vícios ordinários dos seres humanos masculinos. Ao menos ele perdesse tempo com coisas obrigatórias para o nosso gênero como futebol, cerveja e carteado. Ao menos ele tivesse no curriculum uma aventurinha aqui e outra acolá. Mas o cretino era dono de uma reputação inabalável e detentor de uma certidão negativa mais alva do que a hóstia sagrada.
Como eu poderia explicar o inexplicável para um homem com aquela honra imaculada? A saída que me apareceu foi a horrorosa, porém foi primeiro insight que me veio à mente: me larguei no chão e simulei um ataque qualquer.
– O que você está sentindo, homem? – indagou ele, se aproximando de mim.
– A minha barriga… – disse aos berros. – Está pegando fogo.
– Mas o que é isso? – interrogou o velho, perplexo.
A minha atuação fora tão exagerada que deixei largada no chão a toalha verde-limão. O resultado não poderia ter me deixado em condição pior: vestindo apenas a indefectível calcinha vermelha.
“Vai, sabidão, improvisa!”
– Você é um transviado, Tiago?! É isso? – inquiriu o homem. Boca escancarada, olhos maiores do que os olhos.
– Não, Major… é que… não é isso… Ah, desisto! Quer saber, Major, cansei de mentir. Sou sim. Quer dizer. Acho que sou. Eu nunca tive nada… com homem, sabe? Mas, sempre tive uma coisa, uma sensação, aqui dentro, um desejo maior do que os outros.
Era a minha última cartada. Um lance desesperado realizado por um homem desesperado. Se não funcionasse, o jeito seria sair correndo de casa de calcinha e tudo. E tudo, não. E nada. Mais nada. Nem casa, nem emprego, nem mulher, nem férias em Cancun, nem tv a cabo com brasileirão. O que mais me doía era o que mais me dói nessas ocasiões: a perda da tv a cabo. Um homem deveria ter direito inalienável à sua tv a cabo.
– Eu entendo, Tiago! – começou o velho. – Ninguém entende esse sentimento mais do que eu.
“Como assim: Ninguém entende esse sentimento mais do que eu !?”
Quem estava mais atônito, então?
– Eu controlei essa pulsão a minha vida inteira, Tiago! – “o que era aquilo, um filme do Woody Allen? O velho estava pegando a minha mão e ele sussurrava. Sussurrava!” – Você não sabe como foi difícil! Como foi duro. – A mão já estava na minha coxa. – Como é duro!
– Não tem nada disso aqui, seu Major! – retruquei me erguendo de um salto. – Não podemos nos deixar levar pela luxúria. Não podemos deixar que o inimigo domine a nossa mente e o nosso corpo.
– Como assim, garoto! Essa é a nossa chance de sermos felizes. Agora entendo o motivo de eu nunca ter lhe aprovado para a minha filha. É claro! Como não pude enxergar isso antes? Eu olhava para você e via um espelho. Eu me via refletido em você. Como eu poderia querer isso para a Soninha?
“Eu olhava para você e via um espelho.” Que papo era esse, meu deus?! Deviam proibir esses livros de autoajuda. Olha o que estavam fomentando!
– Major, não fique com essa impressão. É só uma fraqueza. Foi só uma fraqueza. Um deslize, nada mais! Já estou bem. Vou ao quarto me trocar e peço que o senhor volte noutro dia. E, é claro, lhe peço que esqueça esse episódio constrangedor. Vamos seguir a nossa vida nos esquecendo dessa conversa.
– Não diga isso, Tiago! – disse o homem me abraçando por trás. – Nós nos entendemos como ninguém mais pode nos entender, por que não podemos viver esse amor?
“Agora estou perdido! O velho está descontrolado! O jeito vai ser dar um sopapo nele. Não! Tenho que pensar noutra coisa.“
– Major, não podemos viver amor algum! É pecado, lembra?! Pecado dos grandes. Pecado impublicável. Pecado imperdoável! Pecado pecadíssimo! Temos que ser fortes para que Jesus nos veja do céu e aprove a nossa conduta!
– Puxa, Tiago! Eu não sabia que você conhecia tão bem a doutrina cristã. Isso só aumenta a minha admiração por você.
“Agora o nome disso é admiração? Sei.”
– Sabe, garoto, eu já vivi um amor assim uma vez. Faz muito tempo. Deixe lhe mostrar. – Então o velho baixou as calças e eu pude ver, para o meu horror e espanto, um desenho em forma de coração tatuado nas suas nádegas. Ainda tinham grafado duas letras no centro da tatuagem.
– JC? Jesus Cristo? Você tem o nome de Cristo escrito nos quartos? – perguntei perplexo me achando, àquela altura, dentro de um quadro surrealista de Dalí.
– João Carlos! Carlinhos, na verdade. Meu primeiro e único amor. Único, até hoje. Até encontrar você.
Foi aí que uma ideia perfeita se materializou na minha mente. Tão boa que eu não podia deixar passar.
– Deixa eu ver de novo, Major. – pedi, aproveitando que a bola estava quicando dentro da área. – Achei tão linda.
É claro que o velho não contou até dois e, com um sorriso aberto de satisfação, me mostrou novamente o seu maior segredo. Não obstante, esse sorriso morreu subitamente em seus lábios quando ele se deu conta de brilho inesperado que surgiu às suas costas.
– O que foi isso?
– Chama-se fotografia. É uma coisa antiga. Na verdade, tem mais de cem anos, mas só nos últimos tempos ela foi acoplada a esses aparelhos de telefonia portátil. Sempre considerei a tecnologia uma coisa formidável.
– Você me fotografou, seu canalha? – gritou o homem, o rosto, uma máscara de ódio e decepção.
– Sim. Deixa-me ver se a foto ficou boa. Para dizer a verdade, ficou ótima. Dona de uma singeleza ímpar! E dá para perceber perfeitamente quem é o dono da tatoo sexy. Perfeito!
– O que você quer fazer com isso, seu pederasta?! – bufou o velho, entendendo a armadilha na qual caíra.
– Pederasta, eu? Pensei que era mais esperto, sogrão! Não vou fazer nada. Nada. Absolutamente nada. Além de enviar a foto por email para a minha conta, não quero mais nada. Apenas o seu discreto silêncio.
– Silêncio? Silêncio sobre o quê? Sobre essa calcinha ridícula? Por mim, você pode se vestir até de mulher maravilha. Por que você acha que eu, logo eu, entregaria você?
– A questão, Major, tem pouco a ver com a calcinha. – falei abrindo a porta do quarto e mostrando a mulher nua que ainda se encontrava prostrada na cama. – Agora preciso que o senhor me ajude, porque ela é pesada demais para eu conseguir levá-la sozinho para o seu carro.
– Eu não vou levar essa ordinária. – gritou o homem com as mãos na cabeça, enfim entendendo a arapuca em que havia caído.
– Não diga isso, sogrão. Não deprecie assim o nome da sua caçula. Isso não é bonito para um pai.
– Caçula? Como assim? É a Jéssica!? Você está com a Jéssica, seu depravado? Quem está faltando para você pegar na minha família, a Joana? Falta só a mãe da sua mulher, seu maldito?
– Eu não queria comentar, mas, pensando bem, melhor a mãe do que…
– Ok! Ok! – interrompeu o homem visivelmente constrangido. – Você é um cretino, Tiago. O maior deles. Tinha que ser logo a Jéssica?
– Sou apaixonado pelo seu DNA, sogrinho querido! E que saber? A sua atual estatura moral não está mais lhe permitindo tecer esses tipos de julgamentos. Quero saber como reagiria a sua família se essa sua ingênua foto circulasse pela net. – disse, observando que o homem notoriamente empalidecia. – Vamos fazer assim: você me ajuda a vesti-la, a colocá-la no seu carro e a gente depois se esquece disso tudo, ok? Ah, é claro, também aceitarei uma promoção na empresa e, logicamente, um aumento compatível ao novo cargo. Acho esse negócio de subgerente muito chinfrim. Gerente se adequa muito mais ao meu potencial.
– Você é um degraçado, Tiago! Não, você é o próprio demônio! Seu destino será o inferno!
– O Inferno? Nem perigo! Com a sorte que eu tenho, será céu, certeza.
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