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A pata do mastodonte

14 de dezembro, 2022 - por Max Franco

Você despertou atrasado naquela manhã e deu um pulo da cama para não perder mais tempo. O banho foi tomado rápido e quente. Depois, você partiu para o seu dia sem café, coisa que odiava, porque café sempre foi, para você, coisa matinal e cotidiana, obrigatória. De tal forma que não se lembrava do seu último dia descafeinado. Entretanto, tinha hora para chegar no escritório e essa hora se aproximava a despeito das suas necessidades.

Você entrou no seu carro, deu ignição, procurou a sua rádio predileta e apertou o pedal. Os primeiros quilômetros te iludiram com a chance de um caminho sem engarrafamentos. Não demorou para se aperceber que não teria vida fácil até chegar à Empresa. No seu jeito inclinado às analogias, você pensou que a vida era como uma estrada. Seu amigo Antônio lhe descrevera como um sujeito acometido de poesia, “por isso é tão triste!” – ele lhe dissera.

Você precisou diminuir a marcha e parar porque alguma coisa aconteceu lá na frente que paralisou o trânsito. Você notou pelo retrovisor, porém, que o motorista do veículo que vinha logo atrás do seu não se deu conta do bloqueio da estrada. Ele seguia na mesma velocidade de antes. Estava distraído. Talvez absorto no celular, mantendo uma conversa no WhatsApp ou apenas vendo postagens de gatinhos no Instagram. Mas o fato é o fato: ele estava distraído.

Você entendeu – e da pior forma – que há ocasiões nas quais você pode tentar o que for para se esquivar do sinistro, mas não haverá jeito. Pode pensar positivo, rezar aos seus deuses, se apegar aos orixás, saltar as ondinhas no ano-novo, pode seguir devagar, com todo o cuidado, atento a tudo e a todos, respeitar às normas vigentes e, mesmo assim, tudo vai dar errado. O Universo não existe para fazer sentido para você e, quer a real? Não está nem aí para você. Você cultiva a doce ideia de que está sempre seguro, mas você não tem controle sobre os outros nem sobre a própria estrada. O futuro está sempre prenhe de possibilidades e só algumas são previsíveis, evitáveis. A verdade é que você tem pouco controle sobre qualquer coisa. Você controla mal seu peso. Não controla nem seu cachorro. E, naquele momento, você não controlava, principalmente, o carro que seguia apressado de encontro ao seu.

Você se enrijeceu e segurou com força o volante como se isso pudesse evitar algum mal maior. Você gritou “meu deus” mesmo se dizendo agnóstico há tantos anos. É que as liturgias continuam todas ali, em algum departamento do seu cérebro condicionado por anos de rezas, doutrinas, crenças e metafísicas difusas. Você não sabia se devia apertar o freio ou soltar o freio, mas, mesmo assim, você pisou até embaixo. O que dizem os especialistas? Não importa. Importa apenas que o motorista que seguiu ao seu encontro, finalmente, acionou o freio que emitiu um grito abrupto e angustiado. O carro veio bambeando, vacilante, ainda célere, rasgando e riscando o asfalto. Você trincou os dentes e se preparou para o impacto. Você estava fodido e, pior, sabia disso.

Você tinha reunião às 8 da manhã. Uma reunião importante com cliente. Você sabia disso, sua equipe sabia disso, seu cliente também sabia disso, mas o mundo não. Na verdade, o mundo estava se fodendo para a sua reunião, como também para o seu carro, para você e para a suas prosaicas necessidades. O mundo não sabe e nem quer saber. O engraçado é que a primeira coisa que passou pela sua mente quando o veículo acertou com violência a sua traseira e arremessou seu carro para frente foi isso: você deve avisar que vai chegar atrasado. Motivo: acidente de trânsito. Parece sempre uma desculpa fácil, sempre a tiracolo. Da mesma família do pneu furado. Mas o diabo é que era mesmo a verdade. Você estava na sua, dentro de todos parâmetros esperados, aí veio um sujeito distraído e te arrebentou a traseira do seu carro. Como não bastasse, ainda o projetou para frente fazendo com que atingisse uma parati meio acabada.

Você saiu do carro surpreendentemente calmo. Suas costas e seu pescoço acusam uma dor aguda, mas suportável. Você quer saber se todos os envolvidos estão bem, saudáveis e se têm seguro veicular, nessa ordem. Você tem seguro, mas não quer usar para não ter ainda mais ônus nessa história. Você entende que tem mais seguro do que segurança. Você se felicita, porque todos estão bem, apesar de nervosos. Você está bem e calmo. Está resignado. Sabe que a sua reunião importante foi para o ralo e que terá mil burocracias para resolver. Mas você está vivo e quem está vivo sempre tem ônus. Viver é troço caro e trabalhoso. Só a morte é grátis, para o morto.

Você resolveu tudo o que tem que resolver e, com o carro reserva do seguro, no fim da manhã, se encaminha para o escritório. Você se dá conta de que aquele episódio é um simulacro da vida. Por isso há quem se apegue tanto aos talismãs que as igrejas e as superstições fartamente oferecem. Porque vida é bicho que não se põe rédea. Queremos acreditar que controlamos, porque somos iludidos e somos covardes. Não queremos enxergar como a vida realmente é. Ver demasiado dói, ofusca, e até cega. A vida é repleta de sinistros sempre dispostos bater a nossa porta, ou na traseira do seu carro. A vida é a pata de mastodonte que, a qualquer hora, em qualquer lugar, desavisadamente, pode pesar, cair sobre qualquer um de nós. E o que podemos fazer para escapar de um mastodonte te amassando e sufocando e triturando e esmagando?

Você, naquela hora, sentiu uma carícia gelada na sua espinha. Você se persignou com o presságio. Foi mais do que persignação, você sabe, foi arrepio. Você teve um insight, uma epifania, uma iluminação, não importa o nome para definir a coisa, mas você sabe que teve o que teve. E foi uma premonição trágica. Você descobriu a raiz de todas mandigas e preces, de toda a vontade de adiar a morte, da tentativa delirante de prescrever algo para depois da morte. Todo este vasto repertório existe para se lidar com o risco da pata do mastodonte hoje, amanhã ou depois. Porque a besta imensa está à espreita nas esquinas e quer seu sangue.

Você chegou ao seu trabalho. Mas sabe que a pessoa que entrou por aquela porta não era mais a que saiu de casa atrasado naquela manhã. Este aí sabe o que não sabia. Este não é mais o mesmo. É alguém que sabe o peso da pata do mastodonte e que ela está apontada para você, para aqueles que ama, para todos que conhece ou que ignora. Você sabe que a vida é caos e lhe resta apenas surfar a onda desse caos tentando não ser engolido. Porque há mais acaso na vida do que se deseja ou espera. Você, antes de tudo, descobriu que a vida não avisa.

Você sabe que a vida é abismo e só lhe resta dançar enquanto cai.