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Da dureza da vida

24 de maio, 2016 - por Max Franco

 

Eu vi. Claro que vi. Não foi a primeira situação assim. Acontece comigo de vez em quando. Acontece de ver antecipadamente. Não é uma compreensão cognitiva ou mesmo um presságio espiritual. Ocorre mais como um intuição, um palpite plausível, um flash de lucidez, mas que – em tantas oportunidades – acaba por suceder. O pior é que depois do sucedido, acabo me penitenciando por não ter feito muita coisa para evitá-lo.

Foi desse jeito naquela tarde. Eu me dei conta antes mesmo que acontecesse de que iria acontecer. Aconteceu.

O garoto mais velho fitou meu filho por alguns segundos. Na verdade, foi mais que apenas fitar. Ele mirou mais que fitou. Foi olhar de cachorro para gato. De descuidista para otário. De político para eleitor. Foi aí que eu percebi que aquela tarde não acabaria sem vítima.

O meninão começou o seu entretenimento se apoderando da bola do menorzinho. Menorzinho que atendia pelo nome do meu filho.

– Pai, aquele menino pegou a minha bola! – começou o garotinho.

– Vão brincar juntos, filhão! – respondi atendendo os ditames sociais da boa convivência.

O pai, se ouviu as queixas do pequeno, não o demonstrou absolutamente, e, tranquilo, continuou entabulando o seu papo com os demais adultos que compartilhavam a mesa naquela confraternização com o pessoal do trabalho.

Por sinal, nunca compreendi com a real facilidade por qual motivo ainda forçam a barra para que uma gente que – naturalmente – passa o ano inteiro simulando boa vizinhança enquanto exerce uma venenosa maledicência recíproca tem ainda que se sujeitar a esta tarefa completamente despropositada de fazer de conta de que aprecia a convivência com os colegas só porque as festas de fim de ano se avizinham. Não posso negar que rego a planta da desconfiança de que a maioria da população ocidental se presta a estas hipocrisias apenas para fazer uma breve pausa na longa lida de puxar tapetes enquanto puxa sacos.

– Pai, aquele menino me empurrou. – delatou o garotinho interrompendo as minhas gratuitas divagações e já exibindo um indefectível beicinho.

– Este pivete é muito mole. – arengou o outro abrindo um sorriso lupino.

– Criança é dureza, não é meu amigo? – declarou o pai do projeto de predador com um sorriso também pai do outro.

– É, não é? – respondi bebericando a minha cerveja aguada.

Não demorou muito para o garoto maior sapecar um safanão na orelha do meu filho.

– Vai, me dá esta bola, seu chato! – gritou o menino maior arrancando a bola das mãos do mais magrinho.

– Filho, não é assim que se faz, né? – disse o pai enfiando a décima sétima coxinha de frango na boca. – Peça por favor, ao menos. – e mais uma vez completou: criança é dureza, não é, meu amigo!

– Sempre! Dureza demais! – retruquei prendendo a respiração e evitando liberar a hordas selvagens do meu temperamento camufladas pela minha aparente tranquilidade , as quais, sedentas de sangue, estavam inclinadas a seguir um caminho de morte e destruição.

Era o que este senhor parecia ignorar, que a barbárie é intrínseca, e que a civilidade, por sua vez, é aprendida. Muito mal aprendida. Por sinal, nem sequer estou deveras seguro de que tão cedo o será. Afinal, foram milhões de anos de animalidade e tão exíguos em busca de alguma coexistência harmônica. Há quem diga inclusive que a civilização é uma pomada que ainda não teve tempo penetrar na pele humana. E eram naquelas situações específicas que me vinha à cabeça se não seria melhor apelar logo para injeções de antibióticos de largo espectro.

– Pai, pai, a minha boca tá sangrando!

– Pai, ele bateu no meu olho!

– Pai, arranhou o meu braço.

– Pai…

– Pai…

Há elementos na alma humana que sinceramente admiro. Um destes, sem dúvidas, é persistência, não obstante, não quando a persistência ocorre na hora de fazer o mal. Por isso, a minha paciência, a qual, posso me gabar, naquele caso estava sendo digna de aplausos também estava escoando com uma velocidade perigosa.

– Me disseram uma vez que menino assim que não se aquieta tem saúde demais. Não concorda? – me perguntou o outro pai com outra coxinha saltitando na boca.

– Saúde? Sério? Já me disseram outras coisas de meninos assim!

– Ai! – ouvi partindo ali de perto. Eu conhecia os “ais” do meu filho e definitivamente aquele não provinha dele.

– Ai! Sai de cima de mim, maluco! – gritava o garoto maior com uma voz histérica.

Todos correram para o jardim, onde puderam acompanhar uma cena inusitada. Na verdade, uma mudança inesperada no desenrolar dos fatos. Desta vez, quem sofria era o galalau. O pequeno estava montado na barriga do outro e, sem titubear, incessantemente, despejava sopapos e mais sopapos na cara do sujeitinho.

– Larga o meu filho, menino! – gritou o pai partindo em defesa do garoto.

– Larga nada! Larga não! Larga de jeito nenhum! – foi a minha vez de gritar enquanto segurava com certa firmeza a gola da camisa do outro pai. – Na hora em que o meu filho apanhava, isso era saúde. Quem pode ser contra a saúde, não é? Queremos todos saudáveis, não queremos?

– Mas, é o meu filho que está apanhando… E ele é só uma criança… – soltou o homem meio gaguejante.

– Deixa disso, amigo! – disse sorrindo. – Vamos ali comer mais umas coxinhas. Você sabe como é criança. Criança é dureza.