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Epístola de Paulo a Pedro
02 de abril, 2016 - por Marcelo Veras
Olá, meu amigo! Escrevo-lhe depois de tanto tempo apenas para que não se preocupe gratuitamente comigo, pois não há ocorrência em minha vida que justifique atrair algo minimamente semelhante à apreensão.
Por sorte, e depois de muito esforço, consegui me livrar das inúmeras dívidas amealhadas em virtude daquela empreitada, a qual, como bem sabe, verificou-se não só falida, mas profundamente degradante para a minha pessoa tão desambientada com essas questões de lacunas financeiras. Agora vivo resignadamente e de forma de quase espartana, mas com a dignidade de quem faz somente o que a suas posses permitem fazer. Como vê, estou melhor do que boa parte da população mundial, a qual, como bem sabe, vive, na sua maioria, acima de seu real padrão.
Não obstante, agora, pode crer, até me sobra vontade de viver. Aqueles impulsos descabidos que nutri no passado ficam cada vez mais para trás. No entanto, por via das dúvidas e para evitar as seduções da angústia, sempre de prontidão ao meu lado, evito ter à mão objetos cortantes ou trazer remédios comigo. Você sabe: gato escaldado…
Meu caro amigo, você sabe mais do que todos das desditas que sofri e dos abismos nos quais caí, mas não cultive mais tantas preocupações comigo, pois sinto que o sinistro é patrimônio mais do ontem do que do amanhã. Há, inclusive, certos dias, belos dias, nos quais consigo passar horas a fio sem nem sequer me lembrar dela ou dos vexames que vivi patrocinados pela mulher que foi, sem dúvidas, o divisor de águas da minha confusa vida. Vejo que, enfim, estou superando os efeitos do trágico epílogo da nossa alquebrada relação. Hoje tenho o que não mais tinha. Hoje tenho esperanças.
Não sei se você sabe que até hoje a polícia não tem a menor noção da localização dela ou mesmo, caso esteja morta, o paradeiro dos seus restos mortais.
Agora tudo ficou mais fácil, mais leve. Fico até com medo de que flagrem nas minhas expressões o alívio que sinto pelo desaparecimento daquela infeliz. Infeliz que só se satisfazia quando conseguia transferir para alguém um quinhão da sua infelicidade. Era isso que ela era, como você recorda, uma representante comercial da infelicidade. Só plenamente satisfeita quando os demais, a sua volta, estavam infelizes. Ela era isso: uma distribuidora de aflições, como aqueles representantes farmacêuticos com as suas maletas atulhadas de amostras grátis de remédios. E eu, o seu maior consumidor, o seu mais assíduo e fiel cliente.
Ainda bem que os investigadores me deixaram em paz. Ao menos acho que deixaram. Faz dias que não me procuram nem me convocam mais para outros interrogatórios na delegacia. Ouvi dizer, porém, que seria denunciado. Mas teimo em acreditar nessa possibilidade. Me denunciar pelo quê? Que razões eu teria para fazer algum mal para aquela desgramada. Vingança? Remorso?
É estranho, mas são em noites assim que mais sinto a falta dela. Noites escuras e silenciosas como a noite de hoje. Noite para se dormir, quem sabe, para sempre. Noites sem sonhos. Noites que nasceram para serem eternas. A vida abriga lá suas ironias, não é meu caro? Eu que padeci tanto pela sua companhia, agora sou torturado pela sua ausência. With or without you. Já tenho trilha sonora. Viva o U2.
Anoitece a noite, meu amigo. O negrume se estende devorando casas, prédios e já invade a minha calçada. É tarde. É noite tarde. Queria você por aqui para me acompanhar nessa taça de vinho, para um abraço amigo. Na verdade, não posso mentir: queria era ela aqui. Ela com aquele sorriso torto. Com aqueles olhos brilhantes como o fogo. Fogo que não perdoou nada e deixou cinza as cinzas. Mas, agora sei, ainda bem, que não mais me queimará nem fará mal. Nunca mais…
Enfim chego ao momento final da minha missiva que já se torna longa e maçante. Estender-se em demasia deve ser uma das faculdades mais aborrecidas de um sofredor. Pois de agora em diante me calarei. Um homem deve ter dignidade e economizar queixumes aos seus semelhantes.
Quer saber, camarada? Eu conheço o inferno e é mentira que o inferno seja feito de fogo. O inferno é feito de vazio. Quando tudo acabou, quando a presença dela acabou, eu morria de medo do medo que se sucederia. Hoje, ao contrário, não tenho mais medo de nada a não ser desse nada que ela me deixou de herança.
Abraços, amigo. A garrafa já está no seu final. E o último gole se avizinha. Todo volume, um dia, chega ao seu final. Contemplo a cidade adormecida e toda às escuras pela minha janela do 13o andar. Quantos segundos até lá embaixo? Verei o rosto dela no último segundo? Não sei. Tomara que sim. Quem sabe? Terei tempo de saber?
Adeus, amigo. Não se preocupe. Não se preocupe com preocupações que não mais existirão, aqui, ali, ou em qualquer lugar. As preocupações se dissiparão com uma só ação. Restará apenas um grande nada flutuando sobre o vazio.
Obrigado per ter sido meu amigo. Assinado: Paulo.
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