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Estimação
02 de abril, 2016 - por Max Franco
Enfim o ansiado sábado se escarafunchou pelas frestas da noite e se instalou. Ele havia prometido: no sábado, naquele sábado, eu teria o meu bichinho de estimação. E eu bem achava que merecia. Tinha onze anos. Crianças de onze anos merecem ter bichinhos de estimação.
Eu tivera, até então, apenas dois coelhos. Coisinhas lindas de se ver, porém difíceis de se pegar. Mas, tive que me desfazer deles. O vizinho ficou feliz. O filho dele ficou feliz. Só eu que fiquei infeliz. Minha mãe alegou que era por causa da asma do meu irmão. Mais um daqueles dados embaraçosos que se avolumam naquela idade das surpresas: pelo de coelho ataca o pulmão. E eu pensando que bichinhos graciosos eram obrigatoriamente inofensivos.
O fato é que eu era uma criança sem bicho. Naquela época isenta de computador, Playstation, TV a cabo e aparelhos de toda a sorte. Portanto, sobejava tempo e minguavam opções. Não havia nada além da sessão da tarde reprisada à exaustão, do futebol e dos livros que conseguia de empréstimo. Hoje, não é sem certa perplexidade que me recordo dessa época em que um dia durava bem mais do que vinte e quatro horas. Tempo de tempo sobrando é o da meninice.
Para mim, nem doença era pior do que tédio. Sempre foi. Até hoje é. Sempre achei a monotonia algo como o não existir em doses homeopáticas. Ter uma criatura para cuidar, naquele momento, aparecia como a salvaguarda para as minhas longas horas enfadadas.
Porém, o dadivoso sábado chegara e, com ele, todas as promessas de uma infância feliz.
Acordei cedo. Coração e boca se confundindo na minha anatomia. Sentei com a minha mãe. Ela não aprovava bicho. Bicho era troço pouco asseado, ela dizia. Mesmo contrariada, ela pôs sobre a mesa a coalhada, a tapioca com manteiga e queijo coalho, e o pão que era levado à boca embebido do café, forte e doce. O seu café.
– Você não deveria ir – disse ela fitando a xícara com a qual molhava os lábios.
– Por que, mãe? – interroguei timidamente.
– Ele está naqueles dias.
– Começou?
– Não reparou? Ele fica com a testa vermelha quando começa.
– Mas faz tão pouco tempo desde a última?
– Estou dizendo. Ele começou – decretou ela com o olhar que usava quando a discussão estava encerrada. – E ele já está lá fora lhe esperando. Vê se não custa demais.
Atendi ao recado e, engolindo a refeição mal apreciando o sabor, saí de casa com a barriga cheia, mas com uma pedra no lugar do coração. Um oco crescente dilatando o peito.
Ele estava em pé na calçada sugando um toco do cigarro que restava. No rosto encovado, os rastros da bebida que já havia consumido mesmo àquela hora da manhã.
– Oi, pai! – soltei, tentando atenuar qualquer tom reprovativo que pudesse carregar a minha voz. Por nada neste mundo queria vê-lo aborrecido naquele dia. Afinal, não desejava que ele pusesse em risco a nossa empreitada daquela manhã. – Então, vamos?
De resposta, ele apenas meneou a cabeça afirmativamente e, esboçando um arremedo de sorriso que parecia velar segredo, atravessou a rua com seu passo apressado.
E eu o segui sem demoras. Eu bem sabia. O período de embriaguez dependia apenas das suas condições físicas. Enquanto resistisse, cambaleava de modo precário da cama até o botequim mais próximo. Só parava quando sucumbia totalmente à fraqueza. Era a debilidade que o salvava. Nessa altura, quando todos já começavam a apostar que dessa vez ele não passaria, o improvável ocorria. Após dois dias de vômitos, tremedeiras e ingestões contínuas de caldos de carne, ele já era capaz de se reerguer da cama e se sentar à mesa conosco.
– Pai! Qual vai ser a raça dele? – indaguei tentando quebrar o calado da caminhada. Mas ele não se dignou a dar retorno me relegando ao silêncio só escoltado pelo clap-clap contínuo das chinelas batucando na calçada disforme.
Já havíamos vencido alguns quilômetros, e ele nada de fazer menção de interromper a marcha. À medida que nos afastávamos de casa, mais a paisagem urbana era substituída pelo ermo salpicado de casebres.
– Pai, isto aqui é ainda a Parangaba? – inquiri forçando um diálogo qualquer.
– Não, estamos pelas bandas do Mondubim – disse ele enfim me presenteando com alguma palavra. – Este bairro é cheio de criação. Veja só, ali já tem um curral.
– Curral? – interroguei intrigado. – E não é mesmo? Isso aqui parece uma fazenda. Mas vamos fazer o que num curral?
– Comprar o seu bicho – disse ele se encaminhando para a porteira do curral. – Não é isso que você quer para se entreter?
Dez minutos depois já voltávamos sobre os nossos passos amarrotando nossas próprias pegadas. Só que agora éramos três. Eu havia escolhido um carneiro branco, o qual, nos primeiros instantes de convivência, já tinha me incitado a perceber que o retorno para casa seria ainda mais exigente do que a vinda. Meu pai havia apontado que não poderia ser um filhote, mas um espécime já com certo porte. A questão era que o animal estava determinado a não nos acompanhar. Ele fincava as patas no solo e, balindo sem parar, empacava resoluto.
Meu pai envolveu o pescoço do bicho com uma corda e não lhe dispensava excesso de gentilezas arrastando-o aos puxavões pela rua de piçarra. Os caminhantes paravam para acompanhar a cena insólita. E não foram poucos que riram ou gracejaram da nossa iniciativa.
– Ajuda seu pai, garoto! O velho vai acabar morrendo do coração!
– Por que vocês não alugam um trator para puxar o animal?
– Bota o menino pra montar no bicho, homem!
– E por que não na sua mãe, fidumaégua? – retrucou ele para o meu desespero, mas com tom baixo. O piadista era um homenzarrão, que portava ainda uma peixeira nos cós das calças. Por sorte, meu pai era bêbado, mas não era doido. E eu era um garoto aliviado porque o galalau não havia escutado a ofensa.
Por via das dúvidas, resolvemos continuar a nossa jornada sem mais dar ouvidos aos transeuntes. Era a atitude mais segura e saudável.
– Vá! – disse meu pai esbaforido. – Puxe agora você!
– Ah, pai… – comecei hesitante.
– O que é? O bicho é seu. Se não quiser levar, o problema também é seu. Deixe aqui na rua que já-já o povo carrega. Vamos, coragem! Você é um garoto forte!
Silenciei porque não tive coragem de confessar. Não era cansaço nem fraqueza. Era um bocado de sentimento enfileirado: compaixão, medo de machucar o desgraçado e, principalmente, uma sensação que hoje reconheço como da família do arrependimento. Não queria admitir, mas naquele momento nutria certo remorso por termos subtraído aquele pobre animal da companhia dos seus semelhantes. Odiaria que ocorresse o mesmo comigo. E tudo que menos queria ali era impingir-lhe a menor aflição.
Mas, ao fitar os olhos do meu pai, percebi que aquele era um ponto que, dificilmente, teria volta. Não me atrevi, portanto, a tentar lhe explicar a minha posição, só porque não achava que alegar pena do bicho seria um argumento que ele considerasse minimamente aceitável e que pudesse demovê-lo dos seus intentos.
Por covardia, segurei vacilante a corda. O balido do infeliz me soou como um cumprimento melancólico, mas não me deixei compungir e puxei o bicho na minha direção.
Ele mal se moveu. Entendi de imediato a agonia do meu pai. Não era hábito seu admitir fraquezas. Contudo, não era uma prática fácil puxar o desgramado do carneiro.
Entendi a agonia do meu pai. Afinal, estava se tornando a minha própria.
O suor já me empapava a roupa e os cabelos. Os músculos do braço me ardiam sem intervalos e, para piorar o quadro, as sandálias de dedo me escapavam de vez em quando dos pés untados de suor e barro. Temia que as lágrimas de frustração e vergonha começassem a se precipitar dos olhos. Desistir e me sentar era tudo em que pensava. Mas, como não queria, nem em sonho, que meu pai gritasse comigo publicamente, forcei para frente o meu corpo e o do carneiro, ambos em estado miserável, mas obrigando-me àquele esforço absurdo apenas porque não queria mirar o que restava do meu orgulho em igual condição.
Como são vãs as pretensões da juventude, porque minutos depois me resignei vencido e com tal dor nos membros que me larguei sentado no meio-fio. Por fim, meu pai teve que, realmente, rebocar sozinho o animal até a nossa casa. Obviamente, nada mudo ou satisfeito.
A tarde já se retraía quando, enfim, chegamos. Minha mãe manuseava uma porção grossa de puxa-puxa, eco do seu trato com moagem no tempo em que vivia na fazenda do meu avô. Mas não nos recebeu com nada mais doce do que um muxoxo de reprovação.
Meti-me decrépito debaixo do chuveiro realizando um breve inventário das partes do meu corpo. Não foi uma surpresa observar que eram poucas que não me magoavam. Porém, em meio às dores, contemplei o embrião de outro sentimento. Era triunfo! Finalmente, tinha o meu bicho! Não era o que eu esperava, mas era meu animal de estimação. Meu carneiro.
Como é do hábito dos meses, eles passaram sem maiores cerimônias. Depois de lavado, tosado, cuidadas as feridas e bem alimentado, o carneiro tinha ganhado corpo e se tornado um animal vistoso. Não era sem prazer e vaidade que, todos os dias, quando o sol amainava as suas forças, eu pegava o bicho no quintal que, sem mais apresentar resistências, me acompanhava em longos passeios nas redondezas de casa.
– Que cachorro esquisito esse seu! – comentou uma garota loirinha, certa vez.
– Não é um cachorro. Não está vendo que é um carneiro? – rebati afetado, estava cansado dos olhares curiosos e comentários jocosos. – E você não está vendo que estou só brincando? – retomou a garota com um sorriso que considerei simplesmente lindo. – É que eu nunca tinha visto ninguém passeando com carneiro como se fosse um cachorro.
– Mas não é contra a lei, é?
A loirinha riu e me acompanhou na caminhada.
No outro dia também.
– Qual o nome dele? – ela perguntou.
– É Rex.
– Rex? – repetiu ela surpreendida.
– Não. – Ri-me. – É branquinho. Você não tinha dito que era um cachorro. Merecia nome de cachorro.
Na tarde do outro dia, fiquei esperando na rua em frente à sua casa com medo de que ela não aparecesse. Por sorte, ela não demorou e eu passei a corda para ela que, feliz, se juntava a nós. Éramos três amigos desvendando nosso pequeno mundo.
E muitas outras tardes como aquela se sucederam. Hoje, não sei se é a minha memória me pregando peças, contudo, ao relembrar esses momentos, vislumbro dias em que o sol brilhava azul e a brisa corria fresca com um perfume doce de jasmim. Com certeza, são devaneios provocados pelo tempo, já que não acredito que, em qualquer época, tenham florescido jasmins na Parangaba.
Sobre determinado dia, entretanto, de tão claro na minha mente, dava para erigir certezas, mesmo sabendo que – comumente – certezas estão prenhes de duvidas ocultas.
Como era de costume, cheguei faminto da escola. Eu e meus dois irmãos menores nos sentamos à mesa. Papai sentado na cabeceira, eu na outra e minha mãe preparando o prato de cada um. O almoço, naquele dia, estava especialmente saboroso.
– Esta carne está uma delícia, mãe? – elogiei de boca cheia.
Ao que ela respondeu com uma mudez inusitada.
– Mãe, que carne é esta, tão gostosa? – insisti intrigado.
– É o seu carneiro! – decretou meu pai sem mais mistérios.
Foi aí que notei que a sua testa estava rubra.
O suco de maracujá ficou de repente salgado.
Engoli o resto do almoço como estivesse devorando um amigo, um parente, um irmão. Na verdade, minhas lágrimas eram justificadas, pois eu sabia, muita coisa estava sendo devorada naquela tarde.
E eu sabia que a qualidade das coisas devoradas é que elas não existiriam nunca mais.
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