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A Vida tem coisas

25 de dezembro, 2024 - por Max Franco

“Há tempo, muito tempo que eu estou
Longe de casa
E nessas ilhas
Cheias de distância
O meu blusão de couro
Se estragou”
(Belchior)

Antes de tudo, quero declarar que a criança da foto sou eu mesmo. Não me pergunte por qual motivo choro nesse dia. A verdade é que, na maioria das minhas poucas fotos de criança, me encontro chorando. Às vezes, me pergunto se eu era, de fato, um garoto birrento ou era a minha mãe que escolhia os piores dias para fazer essas fotografias.

Neste retrato colorido pelo meu talentoso irmão, Vinicius, eu e meus pais estamos no Rio de Janeiro, onde meu pai tinha ido se especializar na Escola de Aprendizes de Marinheiros. Uma tentativa que, depois de algum tempo e de diversas doses de aguardente, se demonstrou frustrada. Em compensação, se houve algum período em que os dois chegaram perto de manter uma relação saudável, funcional e quase feliz, foi esta, porém durou pouco.

Portanto, a despeito da cara de choro, naquela época, era bem possível que eu fosse feliz, ou perto disso. Crianças – como sabemos – não se perguntam se são felizes, e este hábito deve ser o definidor maior de felicidade.

Por qual motivo escrevo estas linhas? Por uma mistura de tédio, tempo sobrando, um sentimento que beira a saudade e porque apenas eu seria capaz de narrar estes fatos ou as impressões destes fatos. Escrevo, então, porque posso.

Alguém lerá estas narrações malfadadas e casmurras? Duvido. Só se estiver com tédio e tempo ainda mais substanciosos do que eu. Além disso, nas atualidades, ninguém lê mais quase nada a não ser posts de fofocas, fake news conspiracionistas ou livros ofensivos de algum coach infame.

Cleide foi uma mãe tardia, com quase 40 anos. Talvez por isso exerceu uma maternidade ostensiva e intensiva dos seus três meninos com todo zelo e dedicação possíveis.

Zequinha, por sua vez, era alcoólatra e devoto do Vasco da Gama. Nas duas semanas nas quais bebia (só bebia), chegava a ser violento e ameaçador. Nas outras semanas, bem-humorado, piadista e quase carinhoso. Infelizmente, o departamento de marketing da primeira versão era muito mais atuante. Era um homem embrutecido pela vida que, quase nunca, atenuou algo para ele.

Não sei se eles chegaram a se amar por qualquer período.

Eu amei-os com potência semelhante.

Com ela, aprendi tanta coisa que nem sei enunciar. Em especial, compreendi que a Vida pede esforço e pode ser bem séria.

Com ele, o amor pelo Cinema, Livros e Futebol. Isto é: que a Vida precisa de coisas desnecessárias para valer a pena ser vivida. Também aprendi a ter ódio de cigarro e afins.

Perdi o Velho para o câncer faz 24 anos.

Ela, por sua vez, foi-se em maio de 2024. Foi-se sem saber que fora e, mal, quem fora. A Vida, primeiro, tirou-lhe a memória; depois, subtraiu ela mesma.

Foi aí que me tornei, de vez, órfão de pais que caminham por ali e acolá; e filho de pais que ainda passeiam do lado de dentro. Há dias de Cleide, nos quais sou muito ciente do que devo ou não fazer e, por isso, cioso das minhas responsabilidades. Todavia, há também os dias de Zequinha, aqueles nos quais preciso me concentrar para não jogar tudo para o alto e sair por aí em busca de fanfarronices, disparates e estripulias. Às vezes, me pego cismando: estas conjecturas são efeitos colaterais de ser filho de quem sou ou dilemas naturais de qualquer habitante deste planeta?

O fato é que, alguns anos depois, eles se tornaram praticamente coabitantes do mesmo teto, quartos separados, isentos de elogio, beijos, carinhos e demonstrações de interesse recíproco. Não me recordo de alguma manifestação de afeto de minha mãe. Ela era um container de mágoas, e devia mesmo ter motivos. Já ele requeria benquerenças, pedi-as, reclamava-as com seu jeito, ora truculento, ora atrapalhado. Nós, os três garotos daquela casa, vivíamos em um eterno ambiente de silêncios entrecortados por queixumes e acusações mútuas. Na década de 80, havia, no planeta uma guerra fria, e na nossa residência, outra.

O que há de extraordinário em tudo isso? Nada. Estes relatos são ordinários, profunda e tristemente ordinários, porque todas as famílias tem as próprias misérias. Maiores ou menores, azuis ou amarelas, cada uma com o respectivo sabor ou volume. Nós tivemos as nossas experiências, as quais nos influenciaram a ser quem somos.

Não obstante, não me julgue apressadamente caso – por algum motivo – esteja ainda acompanhando esse texto. Eu não era infeliz. Nós não éramos, eu e meus irmãos. A gente achava que tudo aquilo era normal. Inclusive, estranhávamos bastante quando acompanhávamos algum casal que demonstrava apreço mútuo. No fim do dia, éramos crianças e agíamos como crianças.

A nossa rua na Parangaba, por exemplo, era um playground sem síndico nem condomínio. A melhor parte do dia era o fim de tarde, quando partíamos para a rua de terra batida para exercermos o nosso papel de pivete. A molecada jogava futebol de travinha, vôlei de cordinha e brincava de tudo que nos viesse à cabeça desmiolada de quem tem 12 anos. Nas férias, roubávamos goiabas, cajus e sapotis dos sítios vizinhos. Banho de lagoa? Por que não? Tudo era motivo para brincadeira.

Morar na periferia tinha seus encantos, porque tínhamos os ares de interior mesmo morando na capital. Os velhos colocavam suas cadeiras de balanço na calçada, enquanto os meninotes corríam feito loucos, brincando de esconder, bila, pião e de qualquer coisa. De tal forma, que eu não sabia se era feliz ou infeliz. Não tinha tempo nem tino para cismar com essas coisas. Eu era menino e menino na Parangaba era livre feito um bicho selvagem.

Não sei se foi aos 15 ou 16 que deixamos os brinquedos de garotos e começamos a levar a Vida a sério. Comecei a trabalhar muito cedo. Os estudos também pediam mais atenção. Sei que, certamente, houve o último jogo de bola seguido pelos comentários e pelas pilhérias derramadas na calçada, depois nos despedimos sem saber que aquela tinha sido a última partida na estradinha de terra.

Como costumo comentar com os meus filhos de forma pouco filosófica: a Vida tem coisas…

E é isso realmente. Afinal, quantas primeiras vezes tivemos na Vida? E quantas últimas?

De lá para cá, quantos indivíduos entraram e saíram da minha vida? Tantos.

Quantos entraram e não saíram? Poucos.

Preciso confessar que estes extravios pelo caminho já me bancaram sofrimentos, outrora. Hoje, aceito-os como circunstâncias normais de quem deseja permanecer vivo. Entretanto, não é pelo motivo de ser normal que se torna menos triste; e é, de fato, algo doloroso que alguém que tenha sido, por certo período, especial para nós, a posteriori, não signifique tanta coisa ou até nada. A Vida faz suas seleções. Os caminhos se bifurcam. As pessoas mudam. Os hábitos são outros. A convivência se reduz e, de repente, um amigo vira um nome em uma agenda que, talvez, mereça algum “feliz natal” e, depois, nem sequer. Pois é, a Vida tem coisas…

Nesse trajeto, portanto, perdi colegas, amigos, afetos e perdi meus pais. Depois de um tempo, a Vida parece nos roubar mais do que nos entregar. Sim, entrega alguma parcimônia, uma boa dose de juízo, certa resiliência e tanta capacidade de aceitar o que não se pode mudar. A Vida ou nos faz revoltados ou nos faz estóicos.

Meu pai, perdi-o em um domingo de agosto. Os seus últimos anos foram repletos de dor e desalento. Começou com um atropelamento quando ele, embriagado, tentou cruzar a avenida perto de casa. Uma belina o acertou no meio da pista. Depois de várias cirurgias em Fortaleza e no Rio de Janeiro, mesmo aleijado de uma perna, ele sobreviveu, apenas para, após poucos anos, identificar um câncer desastroso na boca. Mais cirurgias, mais hospital no Rio, mais muita agonia e definhamento. Ele morreu num dia de jogo do Vasco, sem muita plateia. Queria dizer que a minha mãe chorou pela sua morte, contudo não seria verdade. Não a julgo. Zequinha tinha lhe providenciado uma dose cavalar de desditas, como também havia lhe propiciado seu propósito de Vida: seus três filhos.

Cá do meu lado, foi diferente. Meu pai era uma presença basilar na minha Vida. Talvez ainda seja. Enxergo muito dele em mim, nos meus irmãos e, inclusive, nos meus filhos, que nem o conheceram. Ele me pesava muito, mas o sujeito, ao seu modo destrambelhado, claudicante, muita vez trôpego, me amava. E eu – tantas vezes com uma raiva pulsante – o correspondia.

Minha mãe se foi 24 anos depois. Foi sem dor e sem saber que estava indo. Foi cercada de amor. Queria dizer, sem cair em clichês, que ela foi uma heroína por ter conseguido criar os três filhos com um ordenado reduzido de Cabo de Marinha. Ela costurava seus vestidos caprichados até de madrugada para conseguir uma renda aceitável. Em certo dia, me contou que, muitas vezes, pegava o ônibus para alguma igreja apenas para ver a noiva entrando com o vestido que fizera e pelo qual tanto se esforçara. Ninguém a reconhecia. Ninguém a convidava para entrar na celebração, contudo ela estufava o peito de orgulho e se parabenizava pelo feito. A Cleide era pobre, mas nunca ninguém a acusou de carência de orgulho. Perdê-la em doses homeopáticas; cada vez, mais um pouco; cada mês, um bocado; foi uma lenta angústia. Perdi-me um tanto ao perdê-la. É que a Vida entrega para depois nos tomar. Por quê? Sei lá…

Eu sou educador. Não tenho vestidos para contemplar no dia do matrimônio. Mas, às vezes, raramente, a Vida me oferece certo consolo e também me leva para a frente de igrejas a fim de me mostrar algum resultado.

Nessa noite de Natal, mesmo não sendo tão natalino, tantos nomes me saltam à mente. Seria bom ouvir “Feliz Natal” de alguns, bem como desejá-lo. Há gente que aprecio de longe. Há alguns pelos quais torço e até me disponibilizaria caso precisassem de uma mão ou uma palavra. Seria bom desejar “Feliz Natal” para o Zequinha e para a Cleide. Seria…

Estou envelhecendo e me tornando melancólico, além de emocionado. Em alguns anos, serei insuportável.

Ao fazer algum inventário de afetos, observo com satisfação que tenho um trabalho que me desafia tanto quanto me agrada, como também tenho os seres que amo: meus filhos, Ingrid e Arthur; meus irmãos, Jean e Vinicius; meus raros amigos que tanto admiro; minha mulher, Rebeca, que é uma pedra preciosa em forma de mulher. E tenho histórias. Tenho sorte.

Mas a Vida, a Vida tem coisas.