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Como uma onda

06 de abril, 2020 - por Max Franco

Os primeiros raios de sol daquela manhã já começavam a tingir as calçadas e os tetos das casas quando cheguei ao hospital improvisado no antigo estádio de futebol. A primeira impressão foi de que havia gente de mais para aquele horário, mas, depois, lembrei-me de que, no dia anterior, foram mais de 200 mortos só naquele endereço. Mas que lugar mais estranho para morrer, justamente do lado da torcida do seu time de coração. Morreu fiel ao escudo, meu pai!

Olhei para as faces das pessoas como quem olha para um espelho. Em todas, as cicatrizes da morte doída e recente. Marcas inconfundíveis de uma dor difícil de sarar.

-Pedro Augusto de Oliveira Castro – disse.

– Quem é?

– Meu pai, e engasguei como se não quisesse dizê-lo para, quem sabe, enxotar uma verdade demasiado dura de ser aceita. Ninguém devia dizer meu pai nessas ocasiões. Pai é coisa tão rara para se perder assim. Pai não se recupera. Não há prótese nem avatares de pai. Pai é só um e se acaba.

– O médico que acompanhou seu pai quer vê-lo.

Como quem caminha para um cadafalso, segui pelo corredor acinzentado até esbarrar em um homenzinho de metroemeio com óculos de aros finos dependurados na ponta do nariz.

– Eu sinto, muito, garoto! – disse o homem com olhar grave. – Ele  pediu para lhe entregar esta mensagem que ele ditou para a enfermeira. Devo lhe dizer que seu pai era um sujeito fora de comum, rapaz. As suas cinzas estão naquela urna azul. Ele especificou o que você deveria fazer com elas.

– Obrigado, doutor. – falei com a voz isenta de qualquer emoção.

Ganhei a rua como quem escapa da prisão. O uber não demorou a me deixar onde pedi. Como um zumbi, caminhei até o primeiro banco e abri o bilhete. As últimas palavras de um pai precisam ser lidas.

Filho, há dias bons na vida e há os dias normais.

Imagino que hoje seja um dos piores.

Estou lhe enviando essa mensagem porque não tivemos mais a oportunidade nos falarmos depois da minha internação. Tudo foi muito rápido. Não imaginei que morrer demorasse tão pouco. Um dia, estava na correndo no calçadão. Três dias depois, prostrado nessa cama. É a vida, não tem roteiristas previsíveis.

Você é maior alegria da minha vida e sou muito orgulhoso de ter tido a chance de lhe chamar de filho. Por isso, as minhas últimas palavras são de agradecimento à Vida e a você. Imagino que esteja aborrecido comigo, porque eu neguei insistentemente o uso do respirador. Entenda, eu não sou herói nem quis ser, mas não desejei usá-lo no lugar de outro que precisasse mais. A verdade é que preciso menos.

Por que preciso menos? – você deve estar se perguntando. 

Porque, nesses meus setenta anos, não sinto mais falta de nada. É lógico que queria viver muito mais coisas do que vivi. Não sou suicida, mas realista. Só tolos não querem viver coisas novas e reviver o que há de bom. Você sabe, eu vivi pra caramba. 

Eu quis deixar esse respirador para um sujeito mais jovem para que ele pudesse viver algo do que vivi. Não culpe os médicos. Eu insisti e assinei documento. Pedi apenas que me dessem um troço para dormir e pedi música. Foi. Pedi música. Pedi para que me deixassem ouvir Supertramp nos meus últimos momentos. Isso que é morte apoteótica. Morte com trilha sonora de rock progressivo. Partirei voando nas notas musicais. 

Não se aborreça com seu pai, André. Eu vivi muita coisa. E como vivi. Como diz o Fernando, fui intenso em cada coisa. Em todas de relevância. Quando acertei, acertei bonito. Quando errei, também errei sem moderações. Viajei. Li. Bebi. Ouvi as melhores músicas. Me apaixonei. Vivi os mais belos e trágicos amores. Amei e fui amado. Amei e desamei para amar de novo. Meu último amor, Diana, o mais glorioso. Fiz poucos e maravilhosos amigos. Porque um homem não tem tempo de fazer muitos amigos e amigos precisam de tempo. Também fiz inimigos, é claro, porque só gente medíocre não tem inimigos. Magoei pessoas e me arrependo de tê-lo feito. Deveria ter tido a coragem de buscar uma por uma para lhes pedir perdão. Adoraria que tivesse sido diferente, mas não foi. A vida, desgraçadamente, não permite retornos no tempo. Quem dera, quisera. Em compensação, tive e tenho privilégio de ser seu pai. Tive e tenho o melhor dos filhos. Cada minuto ao seu lado foi cheio de orgulho, prazer e satisfação. Como eu não iria permitir que outro tivesse tais privilégios? 

Em resumo, tive uma vida plena e tive coragem de vivê-la aos 100%. 

A vida não é fácil, filho! Mas há muita gente boa por aí. Seja bom e autêntico que você vai acabar as atraindo para o seu lado. Há mais gente boa do que má, eu sei. O problema com os canalhas é que eles têm um departamento de marketing muito atuante. Não seja um destes, por favor. 

Quanto às minhas cinzas, atire-as ao mar. Não consigo pensar em outro túmulo melhor. Assim faço a minha última viagem. Céu? Você sabe que não acredito nessas superstições. Mas, se existir esse tal de Deus, quero ter uma conversa muito séria com ele. Ele não vai me ver de joelhos. Se ele existir, não acho que ele me fez para viver de joelhos. Não sou homem de ficar de joelhos para ninguém. Acho, na verdade, que ele é que me deve algumas explicações. 

Vivi livre, filho. Não vou morrer preso à maquina alguma. Vivi com dignidade esses 70 maravilhosos e terríveis anos. Vivi plenamente. Não tenha pena alguma de mim. Na verdade, quando se lembrar de mim, a maior homenagem que você pode me fazer é se motivar a viver com igual entrega. Vida, filho, é entrega. Vida é salto. Salte. 

Eu dei meu último salto. Agora, me leve para o mar. Cante a nossa música. Chore a última lágrima. Depois ria das nossas piadas, aquelas bobas. Por fim, me espalhe nas ondas e viva da melhor forma possível. 

Amo demais.

Pai.”

Foi nesse momento que a dor, a dor genuína do filho que perde o pai, a dor do mundo inteiro, enfim, rompe as represas que eu nem sabia que havia erguido e desaba sobre a minha consciência me levando ao choro convulsivo, interminável.

Como ele pediu, aquele velho teimoso, adorável, aquele fauno velho, espalhei suas cinzas às ondas do mar. Não rezei, porque ele não me ensinou a rezar. Mas, entre risos e lágrimas, cantei alto a nossa música:

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo
Não adianta fugir
Nem mentir
Pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no
Nada do que foi será
(De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito)
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo