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Condicionado e ar condicionado
28 de outubro, 2020 - por Max Franco
Fui um garoto repleto de sem.
Isso mesmo: sem mesada, sem merenda na cantina, sem carro do pai ou da mãe, sem atari nem autorama. Entretanto, fui garoto com ar condicionado.
Havíamos nos mudado da Parquelândia para Parangaba. Com a nova casa, um upgrade: um ar condicionado.
Festejamos, eu e os irmãos menores.
– Vamos dormir no friozinho. Quem sabe de edredom.
– O que é edredom?
– Edredom é cobertor em inglês, menino burro!
– Por que não fala nossa língua, idiota?
Partimos para a nova casa, rua de terra batida à frente, sítios e mais sítios por toda a redondeza. Em cada esquina, estabelecimentos pouco afamados, um motel decrépito, um cabaré com o nome de Leila. Mais à frente, uma favela de casebres mal equilibrados, esgoto ao céu aberto, gente que olhava meio esquisito. Mas, não importava, porque tínhamos ar condicionado.
Quando tinha friozinho, os três filhos dormiam na cama de casal. A mãe, na rede, sempre.
Bastava ela anunciar que ia ligar o aparelho para os três partirem para o quarto fresquinho.
O problema era que, ali pelas 4 ou 5 da manhã, ela desligava a engenhoca que já estava meio fatigada. “O frio fica por muito mais tempo”. Não ficava. A gente acordava suado, edredom – em inglês ou não – no chão. O três molhados se perguntando por que diabos tinha que desligar o equipamento. “Sabe quanto custa a conta?”
Não demorou muito para entendermos que o custo-benefício do ar condicionado não estava trazendo muito lucro e, então, cada um acabou indo mesmo para o seu quarto a fim de dormir com o ventilador no três, a metro de distância.
Contudo, de vez em quando, o friozinho do ar condicionado nos seduzia para uma noite debaixo do edredom.
Afinal, éramos meninos sem. E meninos sem costumam emprestar considerável valor às poucas coisas que têm acesso.
Nas atualidades, por exemplo, a cultura maker anda em moda nas escolas. A ideia de fazer coisas ganha, a cada dia que passa, mais adeptos. Moderno? Jamais! Nós éramos uma geração maker. Afinal, muitos dos nossos brinquedos eram feitos por nós mesmos. Outros, eram comprados por qualquer trocado. Quanto custava uma lata cheinha de bilas? Um pião? E pipa? A garotada era mestra de fazer arraia. As meninas brincavam de corda, elástico, pedras… Baladeiras, fiz muitas. Todas, com a devida etiqueta: liga de soro, forquilha de goiabeira, couro de cinto cortado.
É que meninos sem também significa, de alguma forma, meninos com.
Não falta criatividade para quem não tem.
Me lembrei dessas memórias de ar condicionado nesses dias, sei lá por qual motivo. Uma das primeiras coisas que comprei quando tive a própria casa foi o tal equipamento. Eu fazia questão de mantê-lo ligado sempre que estava no quarto. A questão foi que, depois de tantas andanças e da vida capotar algumas vezes, passei alguns anos sem friozinho nem edredom. Por fortuna, há alguns meses, ganhei da noiva um aparelho adorável. Hoje, ele tem um status renovado. A sensação é de luxo. Ligo-o e passeio de iate, janto no Fasano, ocupo a 1a classe. Friozinho no Ceará é camarote.
A Vida é assim. O Tempo passa, as coisas mudam, as pessoas mudam, a gente muda, a nossa visão de mundo e da Vida, também. Nada está, para sempre, condicionado.
Hoje, todos os dias nos quais durmo em casa, desligo o aparelho ali pelas 5 da manhã. Depois de duas horas, me acordo com o travesseiro úmido. Meus filhos me perguntam “Pai, por que diabos você apaga o ar condicionado?”. Eu não falo do custo da energia nem falo nada. Eles não entenderiam. Eles não foram nem são meninos sem.
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