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Quem avisa, amigo é

09 de novembro, 2020 - por Max Franco

– Quer saber? Eu já tenho amigos demais. Não faço questão de ter mais!
Estávamos todos naquela idade em que a Vida é um playground contínuo. Na fronteira entre deixar de ser adolescentes e nos tornarmos adultos. Tínhamos oficialmente idade, mentalidade e a falta de preocupação dos jovens. Afinal, ninguém é realmente adulto se não tem boletos a pagar. Naquela época, tínhamos anos e experiência de menos, porém boa vontade e idealismo de mais.
Obviamente, sentados em tais pautas – não tinha outro jeito – almejávamos o que a letra clichê, meio brega, do indefectível Roberto Carlos, tanto pregava “eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte pode cantar…” Aos vinte e pouquíssimos anos, eu e a minha turma queríamos também um milhão de amigos, mas não só. Queríamos um mundo amigo, unido, harmonioso, igualitário, fofo e perfumado de água de rosas.
Por tal motivo, escutar de alguém que “já tinha amigos demais” soava como uma real blasfêmia. Estávamos na Beira-mar de Fortaleza, eu, meus amigos e essa turma de Brasília. Formávamos um grupo dos mais joviais e risonhos e cheio de muitos. Éramos muito jovens, muito simpáticos, muito animados, muito devotos ao deus Brahma, com ou sem aperitivos. Foi que, inadvertidamente, a moça, uma loirinha que não deveria ter mais de 20 anos, veio com essa frase que jamais saiu da minha cabeça.
– Como assim não quer mais amigos? – perguntei escandalizado. – Isso mesmo! – disse ela sem pestanejar – Já tenho demais. Não tenho nem tempo nem dinheiro para dar conta dos que já tenho. Imagina se quero fazer mais? Vamos fazer assim: vamos bater um papo aqui, tocar um vilão, rir um pouco, tomar umas cervejas, e…
– E? – interrogou Alex, ainda sem acreditar na assertividade da jovem.
– E pronto. Só isso! Para que mais? – Mas, ninguém diz as coisas dessa forma, menina! A gente, ao menos, mente de forma educada. Diz que a gente vai se ver amanhã. Marcamos e, depois, você desmarca usando uma desculpa esfarrapada. Porém ninguém é assim tão objetivo.
– Pois prefiro a sinceridade. Não faço questão de agradar mais ninguém. Disse e repito: já tenho amigos demais! – decretou a moça sem dar espaço para contestações. Me lembro de que ficamos tão revoltados com a grosseria da garota que decidimos ir embora naquela mesma hora. A noite estava boa e promissora. Entretanto quem queria mais ser amistoso com quem já demonstrara que éramos tão dispensáveis? Levantamos sob protestos do resto do grupo de Brasília e partimos para a noite de Fortaleza. Não éramos nem belos nem ricos, mas éramos limpinhos e orgulhosos.
Acabamos em outro botequim. Tinha um grupo de Recife, este, muito mais receptivo. Terminamos à mesma mesa, abraçados e cantando Tim Maia. Na mesma noite, nos conhecemos, nos tornamos amigos desde criança, fizemos juras de amor eterno e, depois, nunca mais nos falamos ou reencontramos. Qual a sutil diferença entre o primeiro e segundo grupo? Cada grupo surfou a onda de forma diversa. A primeira onda foi abandonada no começo. Racionalizaram a onda e ela morreu antes da praia. Já com o pessoal do fim da noite, foi diferente. Ninguém ficou preocupado com o depois e foi uma onda gloriosa. Uma bela onda surfada até o final, mesmo se curta. As relações podem ser assim. Alguns duram toda uma vida, mas são frias, aguadas, sem cor ou sabor. Outras, duram uma onda, mas podem ser lembradas pelo resto dos seus dias. Há ondas baixas e longas. Há ondas altas e curtas. E há também as marolas.
Hoje, tantos anos depois, faço as contas e vejo que ainda não vai dar para se fazer um coro muito grande para se cantar mais forte.
Mas ainda dá para cantar bonito.
Vejo, satisfeito, que não perdi nem sequer um amigo. Alguns estão distantes, mas, nem por isso, perderam esse status. Aqueles que eram, ainda são. Os que não eram, não são. Nesse intervalo, deu apenas para reconhecer quem era quem. E, ainda, deu para mais alguns se sentarem à mesa.
De uma coisa, entretanto, dá para se gabar nesse departamento das amizades: aqueles aos quais chamo de amigos sabem exatamente quem sou. Isso é um privilégio.
 
Vida é para se viver. Não dá para se comer – sempre – pensando se vai engordar ou não. Ou se a comida vai lhe fazer mal. É melhor nem comer. Mas se come, come. Mastigue explorando cada sabor. Não dá para amar com medo de desamar. Não para viver temendo a morte. Não dá para se amigar fazendo tabela excel de amigos. Não dá para se entregar com o terror da desilusão. Se é para sorrir, ria. Se é para chorar, desampare-se. A Vida não é refresco. A Vida não é genérico.
Vida é para se viver.