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Estantes e instantes

26 de setembro, 2016 - por Max Franco

Embora esteja envelhecendo 80 km mais rápido do que estou amadurecendo, ocorre, de vez em quando, num dia desses de natureza atípica e incomum, de alcançar alguma compreensão.
Hoje foi destes dias inusitados. Hoje, pela manhã, ali entre as 9h15 e as 11 horas, entendi algo. Garimpei um entendimento qualquer e valoroso.Nada de especial me aconteceu neste intervalo de tempo que viesse diretamente a  favorecer esta bendita compreensão. Ela me sucedeu aleatória e à revelia, como ganhasse um bingo ou uma rifa, sem grandes méritos ou provocações. Foi como achasse a moeda no chão mesmo sem estar propositadamente procurando moedas no chão.
– A vida é uma grande estante. Cabe a nós organizar prioridades nas prateleiras certas.
Você concorda? Não? Por isso que fui eu que ganhei no bingo e não você! Mas, pense comigo e veja se concorda:
– Dá para colocar tudo nos espaços nobres do armário? E qual é o “espaço nobre”? Eu lhe digo: na altura dos olhos. Isso mesmo. Não precisa se curvar ou esticar o pescoço para ver o objeto do seu afeto. Está ali de fácil visão e acesso. Exatamente naqueles lugares que são bancados pelas empresas para que os seus produtos fiquem expostos no supermercado: à altura da vista.
– Dá para colocar todos os produtos nesta mesma posição? Lógico que não. É impossível. Não há espaço para tudo.
Eu, por exemplo, tenho sempre problemas com livros. Sempre tive mais livros do que tenho tempo para lê-los. Sou rato de livraria e concordo com Borges quando ele diz que o paraíso deve ser uma espécie de livraria.
O problema disso é que você acaba acumulando muitos livros. Mais livros do que estantes, por exemplo. Mesmo doando boa parte do meu acervo, ainda me restam muitos. Então como eu faço? O que geralmente se faz nestas ocasiões. Há livros em espaços mais privilegiados do que outros. Guardo autores na enstante da sala. Outros, embaixo da pia. Não dá para depositar Saramago no armário da cozinha, é blasfêmia. Não dá tampouco para guardar Harold Robbins no metro quadrado mais valorizado da sala de estar. Cada um, literalmente, deve estar no seu quadrado.
Entendi que, exatamente, da mesma forma deveria ser a minha vida. Lembre-se: “longe dos olhos, longe do coração”. Essa é uma daquelas verdades mais perto de absolutas que conheço, porque absoluta-absoluta não existe. Portanto, há elementos que devem ficar sempre à altura do nosso olhar. É uma questão de escolha saber elegê-los.
Para alguns, é grana. Para outros, estética. Alguns preferem saúde. Outros, família.
– Dá para colocar tudo na mesma prateleira?
Você já entendeu o que quero dizer. A questão é que não há nem estante nem sequer instante para tudo ao mesmo tempo na mesma posição. Você vai precisar escolher. Este é o mundo dos adultos. Aquele onde você faz escolhas e renúncias. Onde você compra, leva, mas arca com a conta.
Hoje, percebi que acontece o mesmo com as pessoas que cruzam o nosso caminho. Não dá para tratar como Rubem Fonseca qualquer Paulo Coelho. Não dá para tratar como Rubem Alves qualquer autoajuda. Não dá para tratar como nutella qualquer batom garoto. Não cabe.
Há gente que você elege e que você carinhosamente coloca perto dos seus olhos. Exatamente como estão ali – eu posso ver daqui – Cristovão Tezza, Drummond, Bandeira, Garcia Marquez, Wilde, Pessoa, Clarice, Dostoievsky, Tolstoi…
Há outros que ficam mais embaixo.
Outros, ainda mais.
E há o pessoal debaixo da pia. Não pus fogo nem dei de presente. Cogitei, confesso. Mas, estão ali.
A questão toda está na expectativa. Na verdade, talvez, o sujeito nem tenha tanta culpa de ser o que é. O problema é que a gente fantasia demais. A gente pinta o castelo nas nuvens e depois se decepciona quando ele não tem chão. Meu amigo, ele nunca teve chão! Foi você quem ergueu as paredes sobre as estruturas que não existiam. Então, não venha cobrar do casebre que ele seja palácio. Não entre na farmácia e peça tijolo. As pessoas são o que são. Não dá para querer mudá-las para lhe agradar. Também não dá para prezar quem não lhe preza. Não é ser interesseiro,  mas uma questão simples de reciprocidade.
Este foi o meu aprendizado de hoje, ali pelas 9 horas, na hora daquele expresso com leite.
Foi uma conclusão lenitiva que me apaziguou, um pouco, a alma.
Cajueiros dão cajus. Mangueiras, mangas.
Cada um dá o que tem para ser dado.
O problema é quando se espera manga de cajueiros.
Aí me resta saber definir posições dos autores na sua estante apropriada.
Os livros rasgados, danificados, sem grandes conteúdos, superficiais, equivocados, aguados, dissimulados devem ser dispostos, civilizada e educadamente, nos seus respectivos lugares. Sem ressentimentos. Sem condenações. Sem fogueirinhas. Mas, também, logicamente, sem altares de mérito. (por sinal, há lugar mais escorregadio do que altar?!)
Os grandes títulos, porém, aqueles que você adora ler e reler, gabaritados, profundos, genuínos e poucos, estes sim, merecem cabeceira, posição honrada e atitude amorosa, carinhosa, cuidadosa.  Ali, perto dos olhos, e do coração.