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O direito à tristeza

03 de maio, 2020 - por Max Franco

Sabe o que é síndrome de Pollyanna? “Pollyanna” é um livro de Eleanor H. Porter, publicado em 1913 e considerado um clássico da literatura infantojuvenil. Pollyanna é uma menina adorável. A filha que todo mundo amaria ter. Ela tem uma atitude diante das dificuldades que, no mínimo, pode ser apelidada de resiliente. Pollyanna cria o célebre “Jogo do contente”, que, em suma, é tentar ver o lado positivo até nas condições mais adversas.
Nesse momento no qual estamos inseridos, observamos, aqui e ali, algumas atitudes as quais podemos batizar – com facilidade – de síndrome de Pollyanna, porque estão encharcadas até a borda do copo de “jogo do contente”.
Como você está lidando com essa pandemia? Você está aprendendo a cozinhar pratos diferentes? Que bárbaro! Você, enfim, conseguiu terminar de ler “Guerra e paz”, do Tolstoi? Fantástico! Você, finalmente, deu conta de fazer aquele curso EAD que tanto desejava? Sensacional? Você, realmente, está sendo produtivo nesse confinamento. Você está conseguindo extrair o “lado bom” do corona.
Pois meu caro senhor alegrinho e cara senhora positividade, me digam, por favor, qual o lado bom do corona para aquele que perdeu seu emprego e a condição de sustentar a sua família? Me digam, por favor, qual o lado bom do corona para o empresário que precisou fechar as suas portas e viu seus investimentos, esforços e sonhos escoarem pelo ralo? Qual o lado bom do corona para aqueles milhares que perderam seus entes queridos? Qual o lado bom do corona, querido otimista e querida felicidade-é-o-que-importa, para os centenas de milhares que estão mortos?
É sinal de maturidade se entender e se aceitar que, às vezes, não dá para simplesmente se customizar a narrativa a esse ponto. Não é toda hora que a história é passível de tal relativização. Não é todo dia que o relato é feliz. Há dias ruins, meses ruins, anos ruins. Nem sempre é possível se transformar limões em limonadas. Às vezes, não nem sequer um limão para se chupar. E, nessa hora,o que você faz? Você lida com isso. Você encara a dor de frente e sofre. Não rola “festa do fim do mundo” quando milhares de pessoas perdem a vida e o seus sustentos. Não havia festas nos campos de concentração. Há limite para a alienação. Viver o luto é importante para qualquer real transformação. Às vezes, é justamente na lama que podemos encontrar o adubo para qualquer plantio. Para haver renascimento, é preciso sempre de alguma morte. Esse medo de sofrer e de se aceitar sofrendo é covardia e fuga.
A humanidade precisa aprender com seus erros e, para isso, precisa de reflexão. E, sim, de alguma tristeza. Nós temos direito à própria tristeza. Essa ditadura da “alegria eterna” é uma histeria e, como toda ditadura, algo nocivo para a sociedade.
Não é feio sofrer.
O que estamos fazendo é tentar, ao máximo, minorar os danos desse grande caos sanitário, econômico e político no qual estamos, até a goela, metidos. Todos com medo de morrer e de ver doentes ou mortos os nossos parentes e amigos. O que isso tem de feliz, pelo amor?
Pois lhe digo, caro jogador do jogo do contente, não se desespere tanto e a tal ponto de querer ser feliz quando o momento é desinfelicidade!