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O que falta?
27 de abril, 2022 - por Max Franco
Este é o meu pé direito.
Mas – não se preocupe – você está contando direito e, de fato, eu tenho apenas 4 dedos nesse pé. Posso até escorregar em alguma infâmia ao dizer que ele não parece ser muito direito para um pé direito. Porém é o meu pé mesmo. Ele tem esta quantidade de dedos desde os meus 18 anos e preciso confessar que, a não ser na ocasião da perda, é um membro que nunca me fez falta. Entretanto, há uma reflexão à qual a sua ausência me induz:
– Eu serei sempre incompleto.
Sísifo foi condenada a arrastar uma rocha para cima da montanha todos os dias da sua vida. Prometeus, por sua vez, tinha seu fígado rasgado diariamente por uma águia. Eu tenho outra condenação: sou mutilado, fadado a incompletude.
De dedo?
Sim.
Mas não só.
Já faz anos que convivo com uma vida que parece ad aeternum faltante. Quando tenho perto o filho, ausenta-me a filha. Quando tenho os filhos, falta-me a mulher amada. Quando tenho um faltam-me os outros. E muita vez, não há ninguém. Faltam-me meus amigos, meus irmãos, meu pai que se foi, minha mãe que ainda está mas não está. Falta-me algo do passado que se foi e muito futuro que nem sei se virá.
Bem sei que não sou metade da laranja de ninguém. Não sou uma fruta nem peça de quebra-cabeça. Não sou pires sem xícara nem Piu-piu sem Frajola. Por isso, não persigo minhas partes por aí. Sou o que sou, total nas minhas lacunas.
Contudo sou também dependente daqueles que amo e que me amam. É tão raro ser amado por alguém! E mais raro ainda é a sorte de ser amado justamente por quem amamos. É a maior e a melhor das coincidências. Essas pessoas me faltam o tempo inteiro, de dia e de noite, e a minha condenação é não tê-las quase nunca juntas ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Elas me faltam e, pior, eu lhes falto. Eu sou aquele que sobrou depois que todos foram embora. Depois que eu fui embora.
E o dedo?
O dedo não me faz falta alguma, mas a sua falta me relembra, todos os dias, de tudo e de todos que me faltam.
Porque não há próteses de gente amada.
E o vazio, este vazio, é a abóbada celeste de tão imenso.
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