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Os frutos de ontem e de hoje
07 de abril, 2020 - por Max Franco
O garoto que eu fui vivia arrumando jeito de apagar o tédio.
A rotina era não ter rotina: o futebol no campo Real ou na rua de casa, as brincadeiras juninas, o vôlei em qualquer lugar que desse para estirar a rede, os banhos de lagoa, os livros debaixo do braço, a sessão da tarde repetida à exaustão, as aulas de karatê, os passeios intermináveis com os amigos… Naquela época, menino de periferia tinha dessas coisas. Podia viver na cidade e no interior ao mesmo tempo. Podia fazer todos os jogos na rua, naquela rua de terra, rua-playground. E a gente brincava de tudo que viesse àquelas cabeças avoadas. Era tanta brincadeira que nem me lembro: carimba, pega-pega, 31, esconde-esconde, adedonha e, lógico, fugíamos de cachorro quando precisávamos pular algum muro à cata da bola “embarcada”.
Nesses dias enclausurado em confinamento, me lembro do menino livre, leve e solto que fui. Menino pé-sujo, menino cabeça-de-vento, menino biscoito-recheado, menino repleto de sonhos.
Em que idade um menino começa a ficar velho? Talvez quando ele comece a se lembrar da meninice com tais notas de nostalgia. Talvez quando ele comece a se recordar da meninice como se fosse outra vida, outro menino.
Mas por que tais reminiscências justo no dia de hoje?
A resposta tem a ver com a minha janela. Na verdade, com a vista da minha janela.
É que o vizinho tem goiabeiras, e uma, em especial, que faz sombra sobre a minha janela. Uma goiabeira gloriosa, generosa, mas, penosamente, uma goiabeira desperdiçada. As frutas, todas gordas e brilhantes, servem apenas para o regozijo dos pássaros. São frutas sem bocas, frutas sem mãos, frutas sem meninos.
Eu posso dizer com orgulho, porque fui um menino caçador de fruta. Nós sabíamos exatamente onde, no bairro, se encontravam os melhores cajus, sapotis, cajás e, lógico, as mais suculentas goiabas. Para ser justo, porém, com a verdade, preciso dizer que jamais fui o sujeito que subia nas árvores. A altura sempre me desestimulou. Mas, nem por isso deixei de aproveitar das benesses da natureza. Afinal, eu sabia que dizer “ninguém sobe em árvore melhor do que você!” E, lógico que podemos entender “você” por qualquer um que estivesse comigo. Além do mais, alguém tinha que ficar em terra para apontar as frutas e apará-las. Então, posso dizer, nunca fui autor material de algum crime, mas, apenas, mentor intelectual. Eu cuidava das estratégias e dividia igualmente os frutos dos nossos furtos.
Não posso mentir que, todos os dias, penso em alguma maneira de continuar minha vida de crimes e surrupiar essas robustas goiabas que vislumbro da minha janela. Já fiz mil planos. Mas a meninice passou e, com ela, talvez, a coragem de fazer o imprudente. As goiabas, portanto, crescem ali, tão perto e tão longe, impolutas e irreverentes, como se me dissessem “Você não tem coragem! Você não é mais quem era! Quem diria?!”
Todos os dias essas goiabas me relembram do menino ousado que fui e do homem sensato (covarde?) que me tornei. Infelizmente?
Mas devo confessar que já me jurei que, qualquer dia desses, vou mesmo armar um daqueles planos mirabolantes para por a mão e a boca nessas goiabas da janela. Porque essas goiabas da janela são um símbolo de que tudo que já fui capaz de fazer e não sou mais. É que menino pensa pouco, corre mais risco e se diverte mais. Homens são prudentemente chatos.
Pois para me vingar dessa goiabeira provocadora, ontem fui ao mercado e comprei a maiores goiabas que encontrei. Comi-as todas encarando a frutífera e, quase, com cerimônia.
Entretanto, algo em mim escutou algumas palavras que a goiabeira me sussurrava:
– Goiaba comprada não é tão doce, não é, menino?
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