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Os lugares que comi
18 de outubro, 2016 - por Max Franco
São Paulo, 17.10.2016
Já perdi várias coisas na vida. Algumas, por força de esquecimentos e distrações. Outras, porque elas mesmas quiseram se perder. Convenhamos, chave de carro, carteira, celular, grana… Há coisas que nascem com uma vocação enorme para se extraviar. Há troço que gosta de brincar de se esconder, às vezes, pra sempre. Não obstante, o que tenho mais medo de perder – além das minhas pessoas queridas, é claro, – é a memória.
A memória é um dos mais importantes atributos da raça humana. Tão importante que ela pode – e deve – ser repassada para novas gerações. A memória é a herança que deixamos para nós mesmos. Nós somos o que somos por causa da nossa memória. Caros psicólogos de plantão, tanto os munidos de diploma como os que nunca o terão, não quero ofendê-los: É óbvio que não quero desprezar a influência do peso da genética nas nossas ações, mas convenhamos, é difícil negar que boa parte daquilo que somos e do que fazemos foi urdido pelas experiências pelas quais passamos no vasto pacote da nossa vida.
A propósito, é justamente porque não nos é possível levar essa bagagem de lembranças para uma vida vindoura que não elejo o espiritismo como a doutrina mais satisfatória para nos apegarmos. Não sei bem, afinal, para que me serviriam outras vidas já que não me lembraria delas. Ah, ta certo: há quem alegue que o espírito recorda e evolui, inclusive, com essas várias versões de vidas. Grande coisa! Eu sou a minha consciência. Se a minha consciência vive à parte desses acontecimentos, não me valem tantas vidas. Não curto rascunhos. Prefiro uma bem vivida e com a possibilidade de cevar as reminiscências certas. Apenas as certas, porque – afinal – cultivar momentos vexatórios só é bom para depressivo ou humorista. Não quero ser nenhum dos dois. Gafes, erros e traumas me ensinaram muita coisa, mas nem por isso desejo emoldurá-los nas paredes das minhas recordações.
Por que estou tratando da memória?
Acho que já tinha esquecido. Ah, sim! Isso mesmo: estou tratando da memória, porque no domingo comi Paracuru no almoço.
Não está entendendo, caro leitor? Então me explico: quando a juventude corria célere nas minhas veias, passei uma semana com amigos numa casa de praia em Paracuru. Como as nossas condições financeiras não eram muito elásticas, tínhamos que nos satisfazer as demandas da fome com o que houvesse à mão de menos exigente para os nossos mirrados bolsos de estudantes. E o que tinha de mais acessível era a recorrente moqueca de arraia. Era arraia de manhã, de tarde, de noite e de madrugada. Foram dias bons, eu acho. Não me lembro tanto deles. Lembro bem da cerveja Antarctica, de gente rindo, de mim (rindo mais ainda!) e, é claro, da onipresente arraia. Hoje, muita vez, quando vou à praia, comando moqueca de arraia. Porque gosto? Sim. Também porque gosto, mas, principalmente, para poder novamente sentir nas minhas papilas gustativas o sabor daqueles dias. Para poder em alguns minutos, mais uma vez, comer aqueles dias. Comer Paracuru.
Não sei se ocorre com todos, mas, comigo, é comum. Vivo abocanhando o passado. E assim como Paris quando sinto na boca um crepe de nutella; como São Paulo quando degusto generoso sanduíche de pernil; como Buenos Aires numa empanada; devoro Roma sorvendo um bom gelatto, sacio-me de Madrid com uma deliciosa sangria; alimento-me de Lisboa com um incomparável pastel de Belém…
Me ocorre, agora, que não saboreio apenas cidades e países, mas – também – por que não?! – amigos, emoções e descobertas. Acho simpático poder me utilizar desse poderoso (para não dizer saboroso!) recurso mnemônico para resgatar momentos únicos ao revisitar gostos guardados – com carinho – na memória. É interessante imaginar que posso reviver tantos instantes especiais da minha vida por meio de um bocado qualquer de algo que provei no passado.
Espero que possa levar sempre esses lugares dentro de mim. E que eles me nutram mas não me engordem (mais).
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