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Vergonha e trabalho

25 de fevereiro, 2017 - por Max Franco

“Tudo o que começa com raiva, acaba em vergonha.”

Benjamim Franklin

– Os combustíveis que alimentaram o motor do nosso progresso foram vergonha e trabalho. – revelou o alemão com os olhos marejados de lágrimas contidas.

Estávamos em Berlim. Tínhamos acabados de cruzar a cicatriz do muro que marcava o chão diante do emblemático e suntuoso Portal de Brandemburgo. Era um grupo de mais de sessenta jovens curiosos, os quais – mesmo depois da onze da noite – todos ainda me seguiam céleres e famintos de novas descobertas e emoções. Ambas oriundas de um passado não ainda tão passado.

– O muro havia sido encomendado. Na verdade, boa parte era de pré-moldado. Ele chegou de surpresa, na calada da noite. Não houve tempo para maiores reações da população desavisada. – Eu explicava para a assembleia atenta. – O muro “da vergonha” foi um trauma indescritível para o povo alemão. Dá para algum ser humano minimamente racional imaginar que, da noite para o dia, poderia ser condenado a talvez nunca mais rever seus entes queridos? Filhos e pais, irmãos e irmãs, namorados e amigos, que poderiam morar apenas a um quarteirão de distância estavam prestes a passar anos, décadas, quem sabe, sem poder se ver.

– A população de Berlim e todo o povo alemão, – continuei, observando que transeuntes se agregavam ao grupo e seguiam a minha narrativa. – durante 28 anos, de 1961 a 1989, sofreu sob um jugo pesado e totalmente incomum. Atônitos, todos observaram a cidade ser partida por um imenso muro. A histeria política da época dividiu Berlim em dois setores independentes. E pior: cada um deles conduzido por sistemas rivais. Por sinal, mais do que rivais, a guerra fria tinha transformado os, outrora, aliados, que tinham vencido a 2ª Grande Guerra, em inimigos mortais. E na linha de fogo, que varava a “cortina de ferro”, padecia não só a população já sofrida da capital do 3º reich, mas, na verdade, toda a população mundial que temia diuturnamente uma outra guerra. Esta, em virtude das ferramentas nucleares que cada lado detinha, certamente, muito mais destruidora.

– Eu posso falar? – perguntou titubeante, o moço loiro que nos acompanhava fazia um tempo.

– Ora, é claro. Pois não. – respondi ao perceber o sotaque carregado do alemão. Mas – devo confessar – não sem alguma apreensão. Teria falado alguma besteira? Teria ofendido alguém?

– Vou lhes mostrar duas coisas que estão perto daqui. – soltou no seu português vacilante. – Vocês querem ver uma parte do muro?

Não houve quem hesitasse e todos o seguiram com pressa.

– Pronto! – mostrou o homem com certo pesar nos olhos azuis. – Este é um fragmento do muro que dividia Berlim. Feio, não é? E muito mais feio para nós porque sabemos que muitos morreram, ou foram feridos, ou sofreram torturas e prisão porque tentaram ultrapassá-lo. Todos na Alemanha sentiam raiva dele. Hoje, temos algumas partes do muro espalhadas pela cidade para nos lembrar o que a intolerância e o poder nas mãos erradas podem causar à sociedade. Agora, me acompanhem mais um pouco.

Acompanhamos o anônimo por mais alguns quarteirões. Todos estavam muito curiosos sobre o nosso destino naquela hora da noite. Noite não. A madrugada já mostrava seu cartão de visitas.

– Aqui ficava o bunker central de Adolf Hitler. – Ele disse e todo mundo emudeceu. Emudeceu não. Enregelou. O silêncio poderia ser cortado com uma faca. Todos sabiam que aquele local era demasiado significativo e ninguém desejava quebrar o clima.

– Como vocês podem observar, não há monumentos nem placas de orientação. As autoridades não quiseram transformar esse lugar num destino de peregrinação neonazista. Mas o fato é que foi aqui que o Exército Vermelho encontrou o corpo de Hitler após o seu suicídio.

– O que vocês pensam quando se fala dessa época e, por exemplo, dos campos de concentração. – inquiriu o aluno com certo constrangimento.

– Temos vergonha! – respondeu ele com mais constrangimento ainda. – Temos muita vergonha. Para vocês, essas atrocidades estão nos livros de história ou nos filmes. Para nós, não. Essas crueldades foram feitas por nossos avós. Por nossos tios. Por nossos pais. E – mesmo que não tenham sido feitas propriamente por eles – houve muito silêncio, muita omissão. As pessoas tinham medo dos nazistas e preferiram calar. Todos sabiam da “solução final”, do holocausto, mas ninguém denunciou. Ninguém estava disposto a sofrer as terríveis conseqüências disto. Mas a gente tem vergonha.

– Mas, mesmo humilhados e parcialmente destruídos, vocês conseguiram um desenvolvimento extraordinário depois da segunda guerra. De tal forma que vocês não só capitanearam a União Européia como conseguem ser até hoje a principal economia. – observei com certa complacência.

– É verdade! Os combustíveis que alimentaram o motor do nosso progresso foram vergonha e trabalho. Hoje, mesmo com alguns problemas, a Alemanha é um dos países de melhor qualidade de vida do mundo e uma das economias mais fortes. A Alemanha ainda paga grandes indenizações a Israel e mantém no seu território provas dos próprios erros, os campos de extermínio. Vocês sabem o que é isso? Vocês exporiam para o mundo – diariamente – as suas mais vexatórias falhas? Antigamente, fazíamos o possível para não falar dessas coisas, para esquecer esse passado sombrio. Hoje, queremos purgar esses pecados através da conscientização e da educação. É o que nos resta. Pagar pelos erros passados e formar as novas gerações para que nunca mais – nunca mais – os repitam.

Nessa altura, não era apenas ele que segurava o choro.

E um silêncio repleto de comiseração pairou sobre o lugar sombrio até que todos partimos deixando as nossas emoções prestando luto.