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As vidas da nossa vida

07 de julho, 2021 - por Max Franco

Todos temos duas vidas. A segunda começa quando percebemos que só temos uma.

Confúcio

 – Quantas vidas podemos ter na vida? – Esta é uma das melhores reflexões que traz a (estrondosa) 5a temporada da Casa de Papel.

Não se preocupe que não vou expor qualquer spoiler. Afinal, quem dá spoiler não merece confiança. Mas nem sei se você já não assistiu à primeira parte da derradeira temporada deste fenômeno espanhol que é a “La casa de papel”, porque parece que todos já maratonaram na primeira oportunidade. O fato é que, nesta versão, os produtores, diretores, roteiristas e atores não economizaram efeitos especiais  nem emoções. Sem dúvidas, é a temporada mais bélica e enérgica de todas, mal dá tempo de respirar e lá vem mais bala, explosões e embates. Se eles queriam uma temporada culminante, alcançaram o esperado.

Entretanto, quero me deter em uma das questões trazidas à tona por uma das melhores personagens: a destemperada e fulgurante Tóquio (Úrsula Corberò)

– Quantas vidas podemos ter na vida?

E eu pergunto para completar:

– Quantas vezes você morreu na sua vida?

Eu, algumas vezes.

Não é todo mundo que se pode apresentar como expert em perecimentos. É que nenhum ser respirante costuma se ver como pós-defunto. Afinal, mortos-vivos apenas existem na ficção. Já, vivos-mortos, ocorrem mais amiúde.

Mas antes que alguém tente garimpar alguma nota de metafísica nestas digressões, devo admitir que não há nada de transcendental nas ressurreições da minha existência. Eu só morri mesmo. Vivi, morri, depois vivi de novo. E daí por diante. Sei que não parece adequado usar o verbo morrer na 1a pessoa do pretérito. Sei que também pode parecer exagero dizer “morri”. Morrer, afinal, soa como algo terminal. Mas quem sabe da minha vida sou eu, e das minhas mortes, também.

Estou seguro de que vivi várias vidas – nessa mesma vida – porque mal consigo me reconhecer nos sujeitos que fui.

Há, claro, algo permanente, teimoso e resistente nos meus Eus em cada uma dessas fases. É um DNA qualquer, um jeito de caminhar, coçar a cabeça… Ou uma natureza. Mas não é nada volumoso. Afinal, não sei quantas vezes me escrevi, reescrevi e passei a limpo, para, depois, apurar tantas vezes o texto deste Eu em perene transformação.

Antes, acreditava tanto que é estranho me acostumar com a desacreditança, ou em crer nas dúvidas e duvidar das crenças.

Antes assistia ao mundo com uma perplexidade que só pode ser chamada de cômica. Tudo me assustava de tal forma que demorei a me aclimatar às variações de temperatura dessa tal de vida.

Já tive amigos próximos os quais nem sei estão vivos atualmente. Não digo isso com orgulho, mas com uma lenta melancolia. O jovem que eu fui se gabava dos amigos em pencas. Hoje, conto-os nos dedos, em dúvidas se em uma ou duas mãos.

Há tanto que pensei e dispensei.

Há tanto que fiz e desfiz.

Há tanto que fui e deixei de ser.

Há tanta estrada pisada e descaminhada.

Há ganhos e perdas, e ganhos de perdas.

Tanta coisa boa de ser perdida.

Tantas malas feitas.

E dores que nem sei como sobrevivi.

Se eu odiei? Infelizmente. Ódio é sentimento doído de se cultivar. Hoje odeio essa tarefa de odiar e, no lugar do ódio, viceja apenas uma tristeza amarga.

Já amar, amei desarvoradamente. Amei como se não houvesse o dia de amanhã nem de ontem, quem sabe, nem mesmo o de hoje. Amei até doer. Às vezes, até esgotar qualquer amor. Outras, até o amor se cansar. E descobri que o amor pode ser eterno, interno, externo, como uma respiração. E que bem amar pede não só a a pessoa certa, mas tempo certo.

Mark Twain diz que

Os dois mais importantes dias da sua vida são os dias que você nasce e o dia que você descobre o porquê nasceu. 

Não se cheguei a esse 2o dia, porque não sei bem se um sujeito deve ter um propósito absoluto, calcado na pedra e imutável. Esse papo de propósito é coisa de papo coach. Tesouras têm propósitos. Vassouras têm propósitos. Elas feitas para exercerem determinadas funções. Elas servem. Gente é outro departamento. Gente – como diz Sartre – é condenada a ser livre. “Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”. Condenado porque pode gritar e se debater, mas – no frigir dos ovos – é a gente que tem assumir as próprias coisas, escolher as renúncias que está disposto a fazer e pagar as suas contas de adulto. Todas elas. Não adianta desejar terceirizar responsabilidades nem escapar das consequências. Porque, no fim, cada um tem que surfar a própria onda. 

Não sei mesmo qual é esse “porquê”, mas hoje sei para quem: para as pessoas que amo.

Como é do amor amar, também é desamar. Da mesma forma, é da vida a morte.

Ainda mais a vida de quem viveu de mais, mesmo que não demasiado.

A vida tem dessas coisas. Ela é professora antiga e não se escusa de usar palmatória.

A vida, muita vez, segue os próprios passos.

A vida segue, muitas vezes, por tantas vidas.

É que precisamos ressuscitar para – de fato – viver.

Vida há de ser reescrita.

Eis uma boa questão: para viver outra vida, você está disposto a morrer nesta?