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Se houvesse punição para os maus (O confessor)

08 de junho, 2016 - por Max Franco

Quem é brasileiro sabe, viver neste país é um convívio quase que diário com a corrupção. Uma prática que, infelizmente, é tão endêmica e crônica quanto perniciosa e difundida nestes país-continente. Nos momentos atuais, pela força dos acontecimentos, fala-se mais de corrupção no país do que de futebol (até porque o nosso futebol – atualmente – vem merecendo mais interjeições do que comentários!). “O confessor ” é um manifesto de revolta e um libelo contra a impunidade. Flávio sofreu a vida inteira em virtude da sua classe. Filho da empregada de uma casa rica, pôde sentir na pele as diferenças entre as posições da pirâmide social. Agora, homem feito, ele é convocado por um pequeno grupo para um objetivo drástico: levar a punição para políticos desonestos. Que tipo de punição? Nada mais, nada menos do que a morte. Flávio sempre exige a admissão dos pecados antes da pena capital. Ele é o confessor.

Aqui, trago um dos capítulos do livro. E trago também uma pergunta: e se houvesse um confessor atuando no Brasil atualmente?

” O velho despertou do sono forçado por causa de um solavanco forte. Precisou de uns minutos para desanuviar a mente, mas logo entendeu onde estava. Não tinha dúvidas. Era certamente, a mala de um carro. Seu carro?! Observou que as mãos estavam atadas nas costas. A boca estava amordaçada, os olhos vendados e os pés, também, amarrados. Trabalho completo, coisa de profissional. Depois de trinta minutos, os quais, para ele, pareceram uma eternidade, enfim o carro parou de vez e o motor foi desligado. A garganta estava seca e a boca tinha um desagradável gosto de fel e de bile. Estava apavorado. Tinha sido raptado quando saía de uma locadora de filmes. Que desgraça! Bem que poderia ter ficado na sua casa mesmo e ter assistido alguma idiotice qualquer na TV a cabo. Agora estava ali à mercê de bandidos! Seriam bandidos no plural? Ele tinha visto só um homem que se aproximou dele na hora que tinha ido entrar no carro. Ele parecia flanelinha. Tinha jeito de flanelinha. Ele foi se abaixar no carro para pegar umas moedas. Droga! Ele forçou a porcaria da flanela no seu rosto e ele apagou. Agora estava ali sabe lá para quê!
O juiz viu a porta da mala se abrir e ele foi puxado para o frescor da noite. Não conseguia ver onde estava, mas, pela total ausência de sons de carros, deduziu que estava em algum lugar afastado. Cortaram as cordas dos pés para que pudesse caminhar. Será que conseguiria correr? Valeria à pena? Claro que não! Mal conseguia ficar de pé, imagine correr! Ele foi encaminhado para um lugar fechado e empurrado para uma cadeira, onde relutantemente, e se tremendo ininterruptamente, se sentou. Quando lhe arrancaram a venda e a mordaça, ele deu graças a Deus, mas depois, quando pôde verificar onde estava e, principalmente, com quem quase muda de opinião e pede a venda de volta. O velho estava num antigo frigorífico. Dava para concluir a partir dos inúmeros ganchos de carne pendurados no teto. No recinto, só havia uma lâmpada, que estava sobre ele. O homem que o raptara estava na penumbra, mas conseguia vislumbrar seus traços e, principalmente, seus olhos. Foi o que viu naqueles olhos que fez com que ele preferisse a ignorância da escuridão. – “Não vos demoreis no erro dos ímpios, mas confessai-vos antes de morrer!” – ouviu o velho. – Isso é Eclesiásticos, excelentíssimo Juiz. Ainda há outra muito boa em Coríntios: “Não sabeis que os pecadores não possuirão o reino de Deus?” E mais essa de Lucas: “Quem se humilha, será exaltado, e quem se exalta, será humilhado”. Essa é um clássico! O homem bem que tentou falar, mas, da sua boca, saiu apenas sons guturais ininteligíveis. O outro foi solícito e trouxe à boca uma garrafa de plástico para que ele sorvesse um pouco d’água. Quando o estranho caminhou até ele, o velho observou que ele mancava um pouco. De algum lugar recôndito da sua mente, veio, de súbito, uma informação que ouvira uma vez e sobre a qual não tinha a menor noção da coerência com o momento, mas que o aterrorizou ainda mais. Alguém lhe tinha dito: o diabo é manco! – O que você quer de mim? – disse enfim o velho apavorado. – A sua vida. – respondeu com uma simplicidade tão grande que só podia ser verdade. O juiz acreditou, mas, balbuciando, ainda tentou negociar o seu destino. – Eu tenho dinheiro, rapaz. Posso fazer você rico em um minuto. É só você me soltar e vir comigo. Você não vai querer matar um juiz, não é? – Desculpe-me a sinceridade, excelência, mas já estou contando com você. Por sinal, vou chamá-lo de você mesmo. Você pode até querer me processar por desacato à autoridade, mas, acredito que matar um homem é algo que confere certa intimidade imediata para qualquer relação. O homem claudicou levemente ao redor do magistrado e sacou sua navalha do bolso. O velho estremeceu vexatoriamente e caiu num choro desesperançado. – Vocês juízes são pessoas engraçadas. Juiz e médico são os seres humanos mais próximos do Olimpo que conheço. Ambos semideuses. Na verdade, acredito que
estou até faltando o respeito com vocês quando os chamo de semideuses. De fato, vocês se consideram deuses. Acima do Bem e do Mal. Toda a onisciência e onipotência do mundo concentrada sobre os seus traseiros gordos. Vocês são muito divertidos! E o velho não parava de chorar. – Veja você, por exemplo, mesmo nutrido de tanta empáfia, de tanta soberba, de tanta vaidade não se escusou de receber propinas para favorecer grandes empresas e corporações. Você, mesmo tendo um salário hiperbolicamente maior do que a enorme maioria dos seus conterrâneos, não se isentou de participar de conluios com empreiteiros e políticos para superfaturar a construção de prédios públicos. Você, na verdade, é um palhaço, senhor juiz! O homem gemia sem parar. – Você se acha muito, mas é tão pouco! É apenas mais um parasita! Por isso que um grupo de pessoas sérias, idôneas e, de fato, imparciais condenou você a uma morte cruel e merecida, homem! Porque você traiu o seu juramento, traiu a sua profissão, traiu seu povo e traiu seu país. O preço da traição é, e sempre será, o da pena capital! Porque, tudo, seu juiz, tudo tem seu preço. Nada é de graça! Uma hora a conta chega! E não olhe para mim assim! Não me atribua culpa demais pela sua sorte. Sou apenas o emissário! O entregador! “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”. Já ouviu essa passagem? É do evangelho de São Mateus. É o trecho que fundamenta a instituição do sacramento da confissão. Na verdade, Jesus confere esse mister a Pedro e, naturalmente, aos seus sucessores. Contudo, essa citação me serve como uma luva. Eis aqui o seu confessor, velho leviano! Estou aqui para ouvir a sua confissão e ministrar a sua penitência. – declarou compassadamente e depois sussurrou no ouvido do aprisionado que já estava aterrorizado: Chegou o momento do seu julgamento! Sem qualquer pressa, amordaçou o velho e o ergueu da cadeira. Ele, por sua vez, já havia se resignado à sua sina e, feito um cordeiro a ser imolado, não apresentou reações, a não ser a de urinar nas próprias calças e se debulhar em lágrimas. – Faça seu ato de contrição, pecador! Vamos ver se o diabo vai ou não lhe arregimentar para os nove círculos do inferno! – sussurrou no ouvido do velho e, antes de sair, ainda se lembrou de cortar um pedaço da orelha do juiz que tinha agora um gancho de carne lhe atravessando das costas ao abdômen. Ele ficou ali sangrando e se balouçando feito um bicho agonizante pendurado no teto. E ainda tardaria algum tempo para morrer. Depois que trancou a porta do depósito, atirou o lóbulo da orelha para um vira-lata sarnento que passava por perto, jogou as luvas num saco plástico e guardou no porta-luvas. Olhou para todos os lados por via das dúvidas e, como esperava, não viu ninguém. Aspirou para sentir o cheiro da noite. O clima estava agradabilíssimo. Menos uma cabeça! Faltam cinco agora para concluir a minha obrigação! Respirou fundo e entrou no carro arrancando imediatamente. ”

(FRAGMENTO DO O CONFESSOR, LANÇADO EM 2008)