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A escola itinerante
04 de abril, 2016 - por Max Franco
Lembro-me que estávamos em Munique, fomos conhecer o que os alemães fazem de melhor (além de cervejas, salsichas e joelhos de porco). Passamos a manhã no Museu Alemão. Depois de horas apresentando os submarinos, aviões da primeira guerra, transportes e instrumentos que tanto facilitaram a presença do homem sobre a Terra, almocei com alguns alunos e professores onde sempre gosto de ir em Munique, no mercado. De pé. Pão com carne de porco e coca. Politicamente incorreto. Delicioso.
Depois, fomos para Dachau. Primeiro, o melhor. Depois, o pior.
Certa vez, faz tempo, apresentei para a dona de uma famosa agência de turismo de Fortaleza o roteiro da nossa próxima viagem para a Europa. Ela fez poucas críticas. Sugeriu algo aqui. Ponderou algo acolá. Nada demais. Só de um detalhe, ela ferrenhamente, discordou: Dachau!
Turismo é para trazer alegria, Professor Max! Retira o campo de concentração. Ninguém gosta de campos de concentração (até hoje não sei como ela – sozinha, sem ajuda, sem consultar o google – conseguiu chegar a essa conclusão tão elaborada.)
A nossa viagem é pedagógica. A História… – tentei argumentar com a maior boa vontade.
Esquece a História, professor! Faz assim, tira esse dia de Munique e coloca em Paris. Tem a Eurodisney, sabia?!
Pensei: todo mundo se acha pedagogo. Poucos se arriscam a dar pitacos a engenheiros ou cirurgiões, mas a maioria acredita que pode ensinar a Escola a fazer o seu trabalho. É um caso crônico (e agudo!) de ingerência que sempre aborrece a todo educador. Todo mundo acha que sabe mais fazer Educação do que qualquer professor. Sugestões e críticas, naturalmente, são bem-vindas. Mas lidar com arrogância e com imposições levianas é um chute na Holanda. E, agora, nesta época de whatsapp, essa prática foi potencializada com tal volume que até me assusta que alguém ainda queira se meter nesse ramo. Melhor seria, já que sabem tanto como se faz uma escola, se cada um abrisse a sua.
Eu e as minhas digressões gratuitas…
Onde estava? Sim. Na mulher da Disney… Por fim, encerrei o papo me utilizando da minha singeleza habitual. Disse-lhe que preferia mil vezes aprender sobre Hitler do que sobre Mickey e lhe desejei sucesso. Nunca mais a vi. Deve ser mais uma daquelas admiradoras que entraria fácil na fila dos que me veneram.
A questão é simples: para entender a natureza humana, há Dachau e também há o Deutches.
O fato é que absolutamente nada ou ninguém foi mais nocivo ao Homem, na sua jornada nesse planetinha, do que ele mesmo.
Somos tão complexos, de qualidade tão elástica, que, com uma mão construímos catedrais e, com a outra, campos de concentração. Somos engenheiros do céu e do inferno. Artífices do pão e da espada. Indústrias do bem e do mal. Do melhor e do pior. Ambos, conviventes, renitentes, convenientes ferramentas sempre ao alcance da mão. Somos dignos de orgulho e de pena, de admiração e de asco. Anjos e demônios de nós mesmos.
Basta um dia em Munique para entendermos essa aterradora ambiguidade.
Em Dachau, fomos guiados por um alemão bastante simpático. Ele se chamava Thomas e havia morado em Salvador por quatro anos. O cara até conhecia Jeri, Canoa Quebrada e Fortaleza. Era um sujeito jovial, uma mistura de Bavária com samba-reggae, no entanto, foi só entrar no campo para o seu sorriso morrer. Como prova – sei lá – que campos de concentração não são mesmo de aprovar coisas vivas.
Thomas nos relatou algumas histórias do campo as quais, até eu, geralmente tão interessado em relatos da segunda guerra, ignorava.
O guia nos contou sobre a chamada “faixa da morte”, que era a extensão de terra gramada entre o campo e a cerca eletrificada. Existiam as torres de vigia e atiradores de plantão. Bastava um preso por um pé nessa grama para as metralhadoras cuspirem a sua carga. É lógico que fazer um passeio por ali era o bastante para um desiludido ser enviado para o além. Era um suicídio delivery, à mão, imediato e, muitas vezes, libertador. Não preciso nem dizer que diversos se utilizaram deste expediente desesperado.
Como só o que não faltava entre os soldados era sádico, sempre havia algum que dava um jeito provocar a morte de um encarcerado. A morte era um fenômeno comum. Quase automático. Bastava pegar o chapeuzinho que o preso usava e atirar na faixa da morte, ou no fosso. O cidadão que fosse buscar já sabia do seu destino. Alguns até resistiam. Um pouco. Depois de alguns açoites bem administrados, todos iam. E, assim, iam. Buscavam o chapéu e a morte. A morte é que lhe caía sobre as cabeças em vez do chapéu.
Os nazistas agiam assim. A morte era à revelia.
A rigor, pensavam, todos já estavam mortos. Era só uma questão de tempo. A morte era só um protocolo, uma banalidade.
Muito se fala sobre o holocausto. Não há nenhum dado novo que acirre ou minore as cores do que aconteceu. Foi tudo terrível demais, cruel demais. O que se deu foi inominável, não merece nem sequer substantivo ou adjetivo, apelido ou denominação. O que se deu foi abominável.
Nessa grama onde, hoje, ponho tão placidamente os pés, foi o endereço da Morte.
É isso o que aquela agente de viagem nunca entendeu (nem deve ter entendido até hoje). Que Dachau ensina mais sobre a raça humana do todos os parques da Disney e da Universal juntos. Dá para entender aonde somos capazes de chegar. Nada. Nenhum desastre natural. Nenhuma criatura conhecida. Nenhuma epidemia ou peste. Simplesmente nada foi capaz de ser tão nocivo ao homem do que o próprio. Nós, seres humanos, erguemos catedrais e campos de concentração. Temos que estar cientes disso. Para que não ocorra nunca mais. É a expressão mais adequada para toda essa desgraça: nunca mais!
Mas, fazemos o tempo inteiro, não fazemos?
Veneno muito ou veneno pouco é sempre veneno.
E a gente adora ministrar veneno.
A raça humana é troço letal.
Vivemos a, deliberadamente, nos boicotar, explorar, enganar, manipular, machucar, magoar, vilipendiar…
Todo mundo é meio (ou muito) nazista. Nazista nem sempre por nacionalismo. Nazista das suas coisas e da sua forma de pensar. Nazista da sua classe social, da sua religião, da sua raça, da sua orientação sexual. Nazista a sua maneira. Nazista do seu jeito.
Como o veneno, a questão é sempre a dose.
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